Texto, foto e vídeos por Marcelo Costa
Exceto o vídeo de “Soul on Fire”, por Jamer Mello
Desde 1990 que o Spiritualized soa como um segredo compartilhado por poucas pessoas. Este cenário idílico quase foi invadido por uma centena de milhares de novas almas quando “Ladies and Gentlemen We Are Floating in Space” bateu no quarto posto da parada britânica em 1997, com a atenção sendo estendida para o álbum seguinte, “Let It Come Down” (2001), que foi ainda mais longe recebendo a medalha de bronze das paradas britânicas, e desde então a banda parece alocada em uma área da música pop destinada ao culto (os três bons álbuns seguintes entraram, sem alarde, no Top 25 britânico enquanto “Sweet Heart Sweet Light”, o disco mais recente, é o que foi mais longe até hoje nos Estados Unidos: 60º posição).
Esse cenário justifica, de certo modo, a lotação de menos de 1/3 do Audio Club, em São Paulo, numa quinta-feira bastante fria de agosto em que lágrimas escorreram de vários rostos (embora Jason Pierce, o senhor Spiritualized, insistisse no refrão de uma canção: “Stop your crying now”). Pierce carrega sozinho o nome Spiritualized desde o começo da banda já que os outros 21 integrantes que passaram pelo grupo em 24 anos são apenas peças que ajudam o compositor a realizar seus intentos musicais, boa parte deles surgidos em meio a crises pessoais que vão desde corações partidos (“Ladies and Gentlemen We Are Floating in Space”), pneumonia dupla (“Songs In A&E”) e doenças no fígado (“Sweet Heart Sweet Light”). A versão oficial de “Sitting on Fire”, canção que abriu e deu o tom do show de São Paulo, por exemplo, foi registrada na cama de um hospital.
Na capital paulista, Jason Pierce surgiu acompanhado de Doggen, responsável pelas guitarras do Spiritualized desde 1999, no piano e harmônica além de um quarteto de backing vocals e outro de cordas. Apresentado como “Acoustic Mainlines”, este show – que pode ser ouvido e assistido na integra no Youtube num registro em Reykjavík, 2010 – mostra uma faceta mais lírica de Jason Pierce, presente nos álbuns, mas bastante distante da ode aos riffs ásperos das apresentações elétricas do Spiritualized, que conseguem deixar os ouvidos dos espectadores zunindo por dois ou três dias.
Nesta noite, não. Pierce começa a dedilhar o violão calmamente e, enquanto algumas pessoas conversam, alguns fãs reconhecem a introdução de “Lord Let It Rain on Me”, que esbanja lirismo num arranjo que traz o coral encorpando o refrão de forma mágica. “True Love Will Find You in the End”, cover já clássica do parceiro Daniel Johnston, é a primeira que recebe uivos, berros e ameaça alagar o local. “Cool Waves”, do álbum “Ladies” (o clássico do Spiritualized é uma ode ao fim do relacionamento de Jason Pierce com Kate Radley, então tecladista da banda, que logo depois se casou secretamente com Richard Ashcroft), e “Amem”, que raramente aparecem nos shows elétricos, arrancam suspiros da plateia.
Jason não dirige nenhuma palavra ao público durante toda a noite e a sensação é de estar presenciando uma missa silenciosa, sensação que o coral gospel e o quarteto de cordas amplificam. A atividade litúrgica segue com o hino “Soul on Fire”, um dos raros clipes do Spiritualized (são 12 em 24 anos), que é recebida com aplausos e a voz dos fieis no refrão. Ao lado de “Cool Waves”, “Soul on Fire” já vale a noite, mas Jason pesca lá no fundo do baú, em meio à poeira e a memórias, “Walkin’ with Jesus”, single de 1986 do Spacemen 3, sua banda anterior com Peter Kember, que implodiu por briga de egos gerando dois filhos bastardos: o Spiritualized, de Pierce, e o Sonic Boom, de Kember. Fãs de primeira hora agradecem.
“Feel So Sad” e a raríssima “Going Down Slow”, uma pérola escondida no lado B do single “Out Of Sight”, de 2001, depois abrigada na coletânea de raridades (recomendadíssima) “The Complete Works Volume Two”, de 2004, e pouca tocada ao vivo (além do show de Reykjavík e dessa turnê latina – Santiago, Buenos Aires e São Paulo, mais duas ou três execuções. E só) dividem o show, e a segunda parte se inicia com outro hino litúrgico: “Stop Your Crying”. “Anything More”, a próxima, traz ao cabo “Ladies and Gentlemen We Are Floating in Space”, e lá no final, quando o coral irrompe a citação mágica de “Can’t Help Falling In Love” (vetada pela gravadora no disco oficial, mas presente na reedição e no show), fica difícil segurar as lágrimas.
Se alguém havia conseguido se manter emocionalmente sóbrio até este momento, “Broken Heart”, a canção mais triste escrita por Jason Pierce (outra do álbum “Ladies”), uma sonata arrastada movida por desilusão, álcool e tristeza, trata de jogar a alma na lona. E antes que ela padeça, “Lord Can You Hear Me?”, outra do Spacemen 3, surge para resgata-la deixando-a em dúvida: “Senhor, você pode me ouvir?”. O show reserva para o bis a única faixa de “Sweet Heart, Sweet Light” presente na noite, “Too Late”, e um dos raros momentos dançantes do Spiritualized, a clássica “I Think I’m in Love” (que, em 1998, ganhou um remix irrepreensível do Chemical Brothers). “Goodnight Goodnight” é a despedida perfeita.
Uma perfeita cult band do mundo moderno, o Spiritualized mostrou sua faceta mais lírica na capital paulista em um show que, caso a banda não estivesse entrincheirada no gueto reducionista do rock “barulhento” independente, teria potencial para agradar a turma de monges do coral de canto gregoriano do Mosteiro de São Bento tanto quanto aos senhorzinhos que compram o carnê anual de concertos da Sala São Paulo – e muitos outros. Jason Pierce mostrou como a música pode ser cativante, emocionante, bela; como transformar uma vida complicada em algo magnifico; como, citando Salman Rushdie, “a música nos mostra um mundo que merece os nossos anseios, como deveriam ser os nossos eus, se fôssemos dignos do mundo”. Por uma hora e meia fomos dignos do mundo. E foi inesquecível.
– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne
Leia também:
– “Ladies and Gentlemen We Are Floating in Space” continua medicando corações frágeis (aqui)
– “Songs in A&E”: Jason Pierce acredita na salvação e na redenção através da música (aqui)
– Durante pouco mais de uma hora, o Spiritualized fez do Primavera Sound uma missa (aqui)
– Benicàssim, 2008: “Come Together” faz um estrago violento no coração dos presentes (aqui)
foi demais!