por Leonardo Vinhas
“Escuta isso que eu vou te mostrar. Mas você não pode comentar com ninguém até ter sido lançado”. Essa recomendação, que soa deslocada em uma era de compartilhamentos online, era algo que eu não ouvia há anos. Por isso me chamou a atenção quando ela foi dita pelo músico e cineasta André Pagnossim quando fui entrevistá-lo para o Scream & Yell. O “segredo” em questão era “Bem Aéreo”, disco de estreia do Sereialarm, e o pedido de não divulgar o disco antes de ele estar disponível online tinha relação com a expectativa de seus criadores, os multi-instrumentistas Marcos Andrada e Otavio Bertolo, que haviam levado nada menos que 14 anos da concepção ao lançamento da obra.
A história do Sereialarm começa ainda mais anteriormente: quando Marcos vê todas as suas ambições encontrarem uma triste “irrealização”. Marcos era líder do Vultos, banda que teve lá seus quinze minutos de buchicho na noite paulistana, perdeu o timing da gravação de seu disco, e quando finalmente o lançou (“Filme da Alma”, em 1989) pelo selo Baratos Afins, encontrou indiferença e desprezo em crítica e público. Um novo disco do Vultos só viria em 1996, o independente “Lixo Rico”, e passaria despercebido – assim como ‘O Melhor e o Pior do Rock no Curdistão”, disco solo em que Marcos assina cada uma das 15 faixas com um nome diferente, “pensando como se cada uma fosse mesmo uma composição de uma banda diferente”, segundo suas palavras.
A repercussão mínima dos discos tiraria o músico dos palcos e dos estúdios, mas não o impediu de continuar compondo e registrando tudo em fita cassete. Uma dessas fitas caiu nas mãos de Otávio “Joey” Bertolo, que Marcos conhecera num bar paulistano. Mesmo com as distâncias geográfica e etária (Otávio vivia então em São Carlos, a 400 km da capital paulista, e é 15 anos mais jovem), estabeleceu-se uma amizade e uma parceria que resultaram em “Bem Aéreo”. A distância, as obrigações do dia a dia e questões financeiras resultaram em longos períodos de “incubação” para o disco, que demorou 14 anos para ser finalizado, e agora é finalmente lançado, por ora apenas em formato digital, no sistema “pague quanto acha que vale”.
Em “Bem Aéreo” sobressaem tanto a lírica incomum de Marcos quanto a obsessão de Otávio com Dave Fridmann (produtor e músico responsável por discos do Mercury Rev, Flaming Lips, Café Tacuba e muitos outros): é inegavelmente uma viagem psicodélica, plena de questões espirituais, viagens interiores, pop sinfônico, soluções imprevisíveis para arranjos. Sim, é uma descrição que faz pensar em um disco “cabeção” e ripongo. Mas apesar de uma queda para o xamanismo, o Sereialarm é pop, dolorido e belo – dor que vem principalmente da interpretação ao mesmo tempo frágil e entregue de Marcos, beleza nos arranjos que formam verdadeiras paisagens nada estranhas a quem contemplou a si próprio em viagens de ayahuasca ou ácido.
A história que levou à feitura deste disco está sendo transformada em documentário por André Pagnossim, ainda sem data de lançamento. “São três as coisas que mais me interessam no Sereialarm”, diz André, explicando seu envolvimento com a dupla: “O fato de ser um disco extremamente pop, melódico, com músicas que poderiam ser ouvidas em rádios brasileiras, mas também ser psicodélico, cheio de sintetizadores velhos, mellotron, guitarras intrincadas, e letras ‘fora da casinha’. Também gosto muito do fato do Marcos evitar fazer ‘letras de amor’, no sentido de cantar pra uma mulher. Ele fala muito de solidão, impasses, morte e vida. E por último, me admira demais o trabalho do Joey na execução, produção e mixagem do disco. Principalmente depois de ter ouvido as demos em cassete das músicas, só com o Marcos tocando guitarra e um tecladinho Casio. O Joey conseguiu manter toda a essência das canções, mas completando-as com um trabalho de arranjos incrível, principalmente por ter sido quase todo gravado e produzido em esquema home studio”.
Não há introdução melhor do que essas palavras para apresentar este que já é um dos grandes discos de 2014. E assim, passamos a palavra à banda, que conversou com o Scream & Yell em várias sessões por Skype, telefone e pessoalmente ao longo dos meses de março e abril.
Sei que foi o Otávio que apresentou ao Marcos o trabalho de Mercury Rev, Flaming Lips, Wilco, Daniel Johnston e outros que foram importantes influências para o “Bem Aéreo”. O curioso é que são todos artistas com uma verve psicodélica, e o Vultos era de uma escola totalmente pós-punk, oitentista. Como foi para vocês dois esse intercâmbio de linguagens tão diferentes?
Otávio: A principal coisa que me atraiu no trabalho do Marcos foram as letras, que fogem dessa coisa muito juvenil das bandas de rock, de falar de namoradas, de baladas. Ele já tocava isso no Vultos, e mais ainda no “Rock no Curdistão” – umas coisas mais existenciais, mais filosóficas, até. Quando o Marcos fez as músicas do “Bem Aéreo”, ele ainda não tinha essas influências das quais falamos agora. Mas quando eu ouvi a fita crua, que era só ele no piano (ou na guitarra ou no violão), de certa forma casei as duas coisas na minha mente, o trabalho dele com o dessas bandas. E ele se conectou a isso, a essas novas sonoridades. A partir daí fomos em frente.
Marcos, você estava fora do circuito profissional de música há tempos. Agora que o disco saiu, vocês vão fazer turnê, colocar isso nos palcos?
Otávio: Inicialmente, a ideia era terminar o CD, ou melhor, o álbum. Acho que falar “CD” é uma coisa do passado… Agora o que vai surgir a partir disso eu ainda não sei. Pode ser que vire um show, com mais músicos participando. Eu pelo menos não tenho nada planejado.
Marcos: Eu também não… Mas na minha mente, o Sereialarm já tem dois discos prontos. Já começamos a fazer os arranjos do próximo disco, que se chama “Família da Nuvem”. Fazer show agora até seria bom, mas fazer esse próximo disco me interessa mais.
O nome Sereialarm nasceu quando o Marcos ouviu “o mar abrir-se em acordes”. É um nome que já entrega os temas de muitas letras: uma coisa muito elementar, percepções do inconsciente, uma relação muito grande entre as coisas da natureza e com o mundo “não visível”. O intuito com isso é uma busca?
Marcos: Eu acho que é de procurar [por essas coisas] mesmo. Uma libertação, sei lá. Eu mostrei esse trabalho para pessoas que tomam ayahuasca, e elas não conseguiram ver, sentir tanto a relação [entre elementos e inconsciente], e eu acho que tem uma relação total de respeito, de querer louvar, de fazer que a pedra cante. Como seria a música se uma pedra cantasse, que som ela iria fazer? É uma busca mesmo, e não precisa complicar. O que você acha, Joey?
Otávio: Pra mim, é mais uma maneira de se relacionar com isso. Como estou ligado mais a parte do som, dos arranjos, é bem uma questão de estar em contato com outro tipo de relação com a música também, de eu não ter uma demanda de precisar fazer determinado tipo de música para determinado cliente [nota: Otávio trabalha com trilhas sonoras], então é realmente onde posso soltar as amarras e fazer alguma coisa espontânea.
Marcos: Espontânea, e como fosse mesmo uma expansão de influências que ele e eu temos. Então não é copiar…
Otávio: Essa associação com o som de outras bandas é algo que surge depois que eu fiz a música. Não é uma coisa que eu vou fazer de propósito: ”Vou puxar o arranjo para parecer com fulano”. A última coisa que quero nesse trabalho é fazer isso! Lógico, depois que você está editando, remixando, você repara que tal timbre parece de tal disco, mas é algo em um segundo momento, já na analise. Não faz parte do processo de criativo em si.
Os arranjos abrem muitas possibilidades para um caminho sinfônico. Vocês fizeram o disco pensando no que tinham à mão – ou seja, só não usaram orquestra porque não tinham condições financeiras? Ou existia já essa ideia mesmo de certa economia de instrumentos?
Otávio: Uma coisa que é importante dizer é que, no processo criativo, eu recebi as fitas do Marcos tocando guitarra ou violão, piano, e meio que eu tinha carta branca para fazer o que eu quisesse. Então deixei que as canções determinassem os próprios arranjos. Eu nunca pensei que esse disco tinha que soar “desse jeito” ou de outros… Eu ia ouvindo e tocando junto, começava vir alguma coisa na minha cabeça, eu tentava reproduzir. Não sou nenhum músico formalmente treinado, não tenho muita habilidade com partitura, contraponto, harmonia. Para mim ainda é muito instintivo. “Bem Aéreo” é instintivo e empírico, então é lógico que, por exemplo, tem alguns trechos de arranjos de cordas que, se fossem tocados por um músico, o resultado soaria muito mais expressivo do que uma coisa feita no computador, mas no geral nós nunca deixamos de fazer porque não íamos conseguir chamar um músico “profissional” pra tocar. Sabíamos que teríamos algumas limitações aqui, mas as ideias estão todas lá, e eu acho que para a maioria do público isso vai ser um detalhe imperceptível. Talvez apenas outros músicos ou pessoas que têm um treinamento musical mais apurado identifiquem que alguns trechos orquestrais foram feitos por um computador. Então para mim, essa “imperfeição” vem também como um desapego, faz parte da estética.
Houve longos intervalos entre uma sessão de estúdio e outra, e vocês passavam meses sem se encontrar pessoalmente. É justo perguntar se o disco ficou fiel à ideia original de quando ele foi concebido lá em 2000, ainda nas fitas do Marcos, ou o tempo e as mudanças pessoais pelas quais vocês certamente passaram alterou o direcionamento que o “Bem Aéreo” deveria ter?
Otávio: Quando fui ajustar as mixagens no final do ano passado, tive essa disciplina de não mexer em nenhum arranjo. Vinha aquela coisa: “Tem aquela nota aqui, aquele arranjo lá, tenho uma puta ideia, eu podia fazer outro negócio”. Mas não, cara! Eu me focava: Isso é um disco de 2002 (que é quando as sessões “oficiais” começaram), estou remixando um disco de 2002, não posso mexer em nada!
E você não teve medo de deixar o disco datado?
Otávio: Essa foi a surpresa mais legal: pra mim não soou. É como se realmente ele tivesse resistindo ao teste do tempo, desde a concepção. A gente nunca teve a preocupação de soar como “a banda do momento”. Não tem nenhum timbre, pelo menos pro meu ouvido, que deixe datado. Pra mim é algo que soa muito mais próximo dos anos 70 em algumas faixas, em outras mais dos anos 80 Talvez tenha uma aura, uma coisa retrô, mas não é algo datado de uma forma pejorativa.
Tenho uma pergunta meio delicada: esse é disco muito pessoal para vocês dois, e toda vez que alguém coloca um trabalho artístico na rua, está dando a cara a tapa, correndo o risco da incompreensão. E quanto mais pessoal a criação, mais dolorosa essa possível rejeição. Já teve gente que ouviu e falou que era disco “de maluco”, ou que é dado, ou que é esotérico… todo tipo de coisa. Como vocês estão preparados para lidar com isso?
(nota-se o desconforto entre eles para decidir quem começa a responder)…
Marcos: Olha, eu tive uma banda nos anos 80, Vultos, e foi uma banda assim, do sexto escalão do rock paulista, mas algumas pessoas, inclusive jornalistas, vieram demolindo [o trabalho]… Você tem que aprender a lidar com isso, passar por cima. Eu não vou fazer igual ao cara do Killing Joke, o Jaz Coleman, que foi numa redação e tacou carne podre na cara do jornalista que detonou o disco dele… Acontece, e acho que tem que estar preparado. Hoje em dia, estando mais velho, acho que vou dar até risada. Eu ficava super incomodado, eu recebi críticas positivas na época do Vultos, mas recebi críticas dinamitando mesmo, coisas até pessoais… Naquela época como eu era garoto, incomodava muito, pois eu tinha outras expectativas, entende? A minha grande expectativa com relação a este disco, para dizer a verdade, já foi suprida, pois o Joey finalizou o trabalho. Claro que eu gostaria que as pessoas conhecessem, gostassem, que pudéssemos fazer algumas “gigs” e tudo, mas eu não vou ficar me matando por isso…
Otávio: Dizendo por mim, o meu principal intuito nesse trabalho, na época em que a gente começou o “Bem Aéreo”, até foi atuar como uma banda de uma maneira mais convencional, fazer shows, e tornar isso uma atividade. Mas hoje em dia não: eu tenho o meu trabalho, o Marcos as atividades dele, então a gente não tem expectativa comercial nenhuma, não depende de nada que isso possa proporcionar financeiramente, comercialmente – então a gente está livre para fazer o que quiser. A única vontade que eu tinha é um dia deitar, dar um play e pensar, “pô, legal, ficou do jeito que eu queria, veio um som bacana, eu me sinto bem ao ouvir isso”, e isso eu acho que consegui.
– Leonardo Vinhas (@leovinhas) assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell
Lindo texto, ótima matéria!!! DEMAIS!!!
excelente!
Alguém faça o favor de imortalizar essa obra de arte num vinil 180g, urgente! Fazia tempo que não ouvia algo tão colossal assim.
Linda obra e linda matéria, Leo! Necessita ser lançado em vinil! 🙂
Gente, São Carlos fica a 250km de São Paulo, não 400.
Obra prima!!!
Bonita capa!