Sob o CEL: Qual É A Música?

Sob o CEL #27
Qual É A Música?
por Carlos Eduardo Lima

Não, gente. Este não é um texto sobre o sensacional programa dominical de Silvio Santos, no qual Gretchen, Gilliard e Jerry Adriani eram campeões. Mas vai nos levar lá para o início dos anos 80 do mesmo jeito. Aperte os cintos.

Eu devia ter uns sete anos quando ganhei meu quarto. Sim, até então, eu dormia num sofá-cama. Nós morávamos na casa dos meus avós maternos e o terceiro cômodo da casa era o escritório do meu avô. Aos sete, entretanto, eu já estava grande o suficiente para ter um quarto só pra mim. Ainda lembro-me da disposição dos móveis, que pouco mudou até deixá-lo, 14 anos mais tarde. A porta era a última no corredor e tinha a entrada levemente voltada para a esquerda. Logo se via todo o interior do quarto. À direita, junto à parede, três grandes armários embutidos (ah, esses apartamentos antigos de Copacabana…), um pra roupas, outro para roupas de cama e o último, para brinquedos. Mais tarde ele seria convertido num porta-enciclopédia.

Do outro lado, à esquerda, havia uma mesinha, que logo recebeu uma eletrola Phillips; a escrivaninha, com cadeira, um criado-mudo grande, com três gordas gavetas que receberam várias revistas em quadrinhos e a minha cama, enorme, que parecia o mundo. Atrás disso tudo, a janela para a área de serviço do prédio. Ao longo do tempo, as paredes receberam posters de heróis, recortes de revistas, adesivos de bandas, e, por fim, dúzias de posters de aviões de guerra, que vinham encartados numa coleção semanal, que consegui colar nas paredes após uma grande negociação com mãe e avós. Os equipamentos de som logo vieram para o quarto. Houve tempo em que eu tinha dois rádios – um no criado-mudo e outro na escrivaninha, um Tranglobe, que ficava com um gravador National encostado em sua saída de som, com as teclas play/rec e pause apertadas. Quando algo interessante era tocado nas estações de rádio que eu ouvia – Cidade, Transamérica e Fluminense – o pause era descomprimido e o gravador eternizava aquela música numa das minhas várias fitas cassete Basf amarelas e pretas. Quando muito, para momentos especiais, numa fita de cromo. Vieram discos, um três em um, um rádio-gravador e um rádio-relógio, mas, por muito tempo, ouvir música e adquiri-las passava diretamente por esse processo, por essa instrumentalização.

Lembrei-me disso porque quero falar de uma singela surpresa cinematográfica: “As Vantagens Em Ser Invisível”, que integra a lista de Melhores Filmes de 2012 do Scream & Yell, e que tivemos a sorte de assistir no cinema em plena quarta-feira de cinzas. Não bastasse o filme ser belo, cheio de sutilezas para quem era adolescente nos anos 80, traz uma sequência antológica: quando os meninos estão entrando e um túnel a bordo da caminhonete de Patrick (o excelente Ezra Miller), Sam (uma Emma Watson no melhor estilo “sou linda e legal, mas não estou te dando mole) ouve uma canção no rádio e entra numa espécie de êxtase com a beleza da música. Ela pergunta para Charlie (Logan Lerman) e Patrick quem está cantando e que beleza de canção é aquela. Nenhum deles sabe a resposta e assim será até os momentos finais do filme.

Pode parecer estranho para o nosso conectado ano de 2013 que, há pouco mais de 20 anos, surgiam situações como essa. A gente ouvia algo muito legal no rádio e ficava aguardando que o locutor dissesse o nome da música, ao menos o cantor e às vezes isso não acontecia. Restava-nos um tempo de esforço e trevas em busca das respostas. Essa estrutura musical-operacional que havia no meu quarto da Rua Constante Ramos, na Copacabana do início da década de 1980 não era capaz de me dar essas respostas. Como se já não fosse esforço suficiente gravar canções do rádio sem que o locutor falasse demais no início ou fim das músicas, ele ainda omitia dados de tamanha relevância. Não raro eu montava uma vigília em busca das canções só para ouvir quem as cantava, muitas vezes sem sucesso.

Hoje é uma questão de digitar um trecho da letra no Google ou usar algum aplicativo que identifica melodia ou palavras e fornece a resposta em questão de segundos. Chega a ser ridículo que tamanho problema existencial de nossa adolescência tenha se tornado uma questão banal do cotidiano da pós-modernidade. Lembro-me de muitas situações de desespero. Ao ouvir pela primeira vez “Wake Me Up Before You Go-Go”, com Wham (duo que trazia George Michael e Andrew Ridgeley) nos idos de 1984, constituiu-se missão impossível entender o título inteiro da música e muito menos quem a cantava. “One”? “Am”? Quem eram esses caras? Que voz era aquela? E o instrumental com metais e vocais femininos? Felizmente havia um bom número de programas de clipes nas emissoras de TV, nos quais resolvíamos essas dúvidas. A canção do Wham foi esclarecida dessa forma, algo que seria impossível para um sujeito de 14 anos, ainda cursando o IBEU, descobrir apenas ouvindo o inglês dos locutores do rádio carioca oitentista. E olha que era muito melhor que o inglês Joel Santana que veio mais tarde.

Alguns casos demoraram anos para serem solucionados. “When Love Breaks Down”, dos ingleses do Prefab Sprout –uma das canções da minha vida – tocou uma vez na Rádio Globo FM sem que nada fosse dito a seu respeito. Monitorei a programação da emissora por dias e eles não a repetiram. Alguns anos depois, já com a MTV em atividade (vejam, uns seis anos mais tarde), dou de cara com o fim da melodia, cujo clipe passava na telinha da TV. Ainda deu tempo de ver o nome da banda, mas não o da música. Uma nova caçada teve início: encontrar discos do Prefab Sprout nas lojas. Na Praça Saens Peña, em plena Tijuca, encontrei um disco da banda chamado “Jordan, The Comeback”, que adquiri imediatamente, mesmo com a ciência que a música que eu buscava não estava ali. Demorou pouco para notar que o disco com minha música estava fora de catálogo. Fui encontrá-lo numa loja chamada Sub Som, um baluarte tijucano, com grande glória nos anos 80, quando era parada obrigatória para roqueiros em geral. Só fui frequentá-la nos 90’s, quando namorava uma menina que morava perto dali. Repousava, majestoso, em uma das estantes, o meu futuro vinil de “Two Wheels Good”, terceiro disco do Prefab Sprout, primeiro a ser lançado no Brasil em 1985, numa série de álbuns que a Columbia (depois Sony), colocou no mercado, apostando no crescimento do rock entre a garotada.

O Prefab Sprout era, bem ou mal, uma banda que estava em atividade e lançando discos. Com o Moody Blues, veterana formação progressiva inglesa, o buraco foi mais embaixo. Era uma noite qualquer do fim da década de 1980. Eu já me encontrava devidamente aconchegado em meio a travesseiros e cobertores, já entrando no sono leve, aquele que te conduz lentamente à inconsciência, quando uma melodia do rádio-relógio veio me trazendo de volta. Sim, claro que eu dormia com o rádio ligado e sintonizava a Antena 1 durante a noite, justamente pelos módulos grandes, cheios de músicas legais que não tocavam em nenhuma outra estação. A melodia era suave, linda, triste. Já com os olhos abertos no escuro, como se aquilo fosse me ajudar a saber quem cantava, comecei a prestar atenção ao que o cantor dizia. Era algo sobre fim do amor, “pessoas que não se entendem”, alguma coisa assim. A canção estava na metade rumando para final. Veio outro refrão, um clima de orquestra, apoteótico, tudo diminuindo até que apenas as cordas permanecessem e fossem se apagando. A voz da locutora irrompeu pelo silêncio adentro, avisando que já passava da meia-noite e que, no dia seguinte, haveria algum evento, provavelmente no Planetário da Gávea. E veio o comercial. Nada do nome da música, nada do nome da banda.

A procura seria do zero dessa vez. Lembro-me de ir a uma loja de discos chamada Satisfaction, situada numa galeria do Posto 6, em Copacabana. Lá comprei alguns CD’s essenciais para minha sobrevivência, uma coletânea do Marvin Gaye, o primeiro disco do Doors, “Astral Weeks”, do Van Morrison… A música do rádio me parecia algo do Alan Parsons Project, Pink Floyd, alguma banda com a matriz progressiva. Eu já estava com 18 para 19 anos, já era um pouco mais esclarecido no assunto. De alguma maneira acabei chegando no nome do Moody Blues e o disco foi encontrado na própria Satisfaction, uns cinco anos mais tarde. Sim, gente, demorávamos anos atrás da música. Foi difícil também concluir que Al Stewart cantava “Year Of The Cat”, Fátima Guedes era responsável por “Cheiro de Mato”, Outfield por “Your Love” e Tavito era a voz e a mente por trás de “Rua Ramalhete”.

Sobrevivemos a esta Idade das Trevas. Sinto falta da estrutura rádio-loja de disco, acho insubstituível em termos de aquisição de conhecimento, mas, a cada dúvida que tenho sobre uma música, Mr. Google tem cumprido seu papel em poucos minutos. Para quem passava por esses calvários na adolescência, a rapidez de hoje é como um teletransporte da Enterprise virando realidade palpável.

PS/ Quase Spoiler: A música que toca na sequência de “As Vantagens Em Ser Invisível” é um clássico de David Bowie, que não vou contar para provoca-lo(a) a ver o filme. Assim que a melodia entrar na tela, você irá saber. Mas, se a curiosidade for maior, o vídeo está abaixo. A questão que fica: quando tempo a personagem de Emma Watson irá demorar a descobrir qual é a música? Assista e descubra.

– CEL é Carlos Eduardo Lima (siga @celeolimite), historiador, jornalista, fã de música e responsável pela coluna Sob o CEL no Scream & Yell e pelo podcast Atemporal.

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Leia também:
– “As Vantagens de Ser Invisível”, um belo filme sobre família, por Marcelo Costa (aqui)

One thought on “Sob o CEL: Qual É A Música?

  1. Puxa vida, isto foi um atestado de velhice hein CEL? Me sinto o mesmo e me lembro com muito carinho este tempo. De gravar da rádio e ter músicas sem introducao, sem final, sem saber quem tocava e depois de muito tempo descobrir. Tem várias que até hoje não consegui descobrir o nome, por exemplo uma do Ringo Starr que tocava na Ipanema em Porto Alegre.
    Outro episódio aconteceu também com Fuzzy do JEsus, que eu jurava que devia ser Dinosaur Jr. Metal Baby do Teenage Fanclub e a felicidade que senti quando descobri o disco que tinha a música. Bons tempos.

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