por Bruno Leonel
Com um trabalho que vem ganhando boa repercussão nos últimos anos, a cantora baiana Márcia Castro desponta como um nome genuíno dentro da música brasileira. Aliando interpretações poderosas, shows envolventes e um repertório que resgata compositores clássicos combinados com alguns nem tão conhecidos, a cantora se destaca por apresentar um trabalho criativo e plural que passa por estilos como Samba, MPB e até tropicália.
É notória a identidade que a cantora imprime em suas faixas. Após uma estreia elogiada com “Pecadinho”, de 2007, seu segundo disco, “De Pés no Chão”, de 2012, trouxe canções de nomes como Cartola, Gonzaguinha e Novos Baianos enquanto a nova geração é representada por Otto (em uma parceria com sua ex-mulher, Alessandra Negrini) e pela presença de Hélio Flanders, do Vanguart, que divide o microfone com Márcia em “29 Beijos”.
Neste bate papo realizando pouco antes de uma apresentação em Londrina, no Paraná, Marcia Castro fala sobre a carreira, analisa o trabalho em estúdio e as apresentações ao vivo além das eventuais dificuldades de se estabelecer como intérprete autoral em uma época na qual o grande público têm dificuldade na “abertura para o novo”. Segundo Márcia, “as pessoas querem reconhecer sensações e não conhecer novas sensações”. Com você, Márcia Castro
Sua carreira começou bem cedo – você toca violão desde os 11 anos. O que mais te inspirou a querer aprender música?
Acho que a principal motivação foi meu pai. Ele sempre me incentivou a ouvir música desde muito cedo. Ele deixava vinis e fitas disponíveis para ouvirmos em casa. Meu pai era músico, tocava trompete e sempre conversava muito com a gente sobre música… Minha família tinha uma rádio na Bahia e sempre havia fitas de rolo com programas e música foi daí que comecei a ter contato com a coisa toda. Desde muito cedo eu cresci em um ambiente musical muito forte. Ganhei meu primeiro instrumento com essa idade mesmo, mas sem grandes projetos.
E como ocorreu a mudança?
Até ter uns 16, eu apenas “brincava” com o violão. Na época não tinha pretensões profissionais com a música, mas com o tempo fui mudando isso. Um dia um amigo meu, compositor, o Wilson Aragão, me chamou para fazer algumas apresentações com ele em bares de Salvador e assim comecei a tocar na noite. Fiz isso por algum tempo, e com uns 22 anos tomei a decisão de não fazer mais apresentações em bares… Acabava sendo um repertório muito enfadonho, sabe? Você precisa sempre repetir as mesmas coisas, e eu andava um pouco cansada disso. Então decidi partir para carreira autoral e acabei fazendo meu primeiro show. Eu fazia na época uma pesquisa com vários compositores baianos que saíam desse circuito comercial e da cena axé music (que dominava bastante no período), então escolhi algumas obras mais nesse estilo para interpretar.
Quais compositores que você resgatou nessa fase?
Eram vários nomes como Luciano Salvador, Arnaldo Almeida, Tito Baiense, Deco Simões, Carina de Faria, Sandra Simões, Manuela Rodrigues, Márcio Melo… são muitos nomes de pessoas interessantes de Salvador que produzem boa música e que não estão em nenhum grande circuito. A idéia era fazer um show interpretando músicas desse pessoal. Nesse show apresentei algumas composições minhas também. Assim foi feito o primeiro show que serviu de embrião para meu primeiro disco, “Pecadinho”, de 2007. Embora componha também, comigo é um processo muito pontual. Não é algo que faça freqüentemente. Dificilmente eu faria um disco completo só com composições minhas. Considero esse momento (o lançamento do primeiro disco) o início da minha carreira. Só então posso dizer que estabeleci um repertório. Acho que é no disco que uma obra é perpetuada para então poder ser divulgada. É bem diferente de tocar ao vivo, sabe? O momento do show é algo muito efêmero, acontece e acaba. A gravação permite que algo seja guardado e resgatado em vários momentos. Hoje eu ouço um disco e daqui uns anos poderei ouvir novamente. Nesse primeiro disco foi o momento em que reuni um repertório e estabeleci um início da minha carreira.
Você comentou sobre esse momento de mudança para um trabalho mais autoral, quando você se apresentou ao vivo nas primeiras vezes. Como foi a recepção do público? Imagino que seja bem diferente a reação da platéia com os dois tipos de repertório…
Na verdade, nos primeiros shows dessa fase mais autoral estavam presentes muitas pessoas que já me acompanhavam nos bares e lugares onde eu me apresentava normalmente. Como o pessoal era conhecido ajudou a estabelecer uma proximidade do público. Naquele momento, como era novo, houve uma receptividade interessante. Obviamente, manter uma carreira musical autoral é muito difícil. A gente vive hoje em um momento no qual as pessoas têm dificuldade em “abertura para o novo”. Elas querem reconhecer sensações e não conhecer novas sensações. Querem ter o reconhecimento de uma emoção, de uma letra de música, e se você se propõe a fazer algo novo, sem uma referência de reconhecimento, acontecem certas dificuldades. É preciso desenvolver um trabalho. Você vai lutando contra essa tendência do mundo contemporâneo. É uma dificuldade constante. Não ocorre só no início de carreira, mas durante toda ela. É necessário muita força de vontade e acreditar também um pouco no universo. (risos)
Falando sobre apresentações ao vivo: em 2010, você passou pelo festival de Montreux, na Suíça. Como foi a recepção do público lá fora em comparação com o público brasileiro?
Há bastante diferença sim. Pelo menos nas experiências que tive tocando no exterior, vi que eram pessoas extremamente abertas para a música nova – e especialmente para a música brasileira. Lá fora há grande reconhecimento de compositores e da cultura do Brasil. Houve momentos bem interessantes. Esse show de Montreaux foi a primeira vez que me apresentei com a banda que gravou o segundo disco comigo (“De Pés no Chão”, 2012). Foi maravilhoso. Fizemos mais uns 20 shows na Turquia. É sempre bom tocar em lugares diferentes. É renovador – especialmente quando são lugares distantes assim.
Comparando os dois álbuns (“Pecadinho” e “De Pés no Chão”) há uma diferença notável nas faixas e na sonoridade. O processo mudou de um disco para o outro?
Foram processos bem diferentes. “Pecadinho”, por exemplo, foi um disco que surgiu dentro do estúdio. As composições já estavam prontas e, junto com o produtor, a gente discutiu arranjos e trechos de cada faixa. Houve depois um momento coletivo com todos os músicos, cada um dando idéias. Já no “De Pés no Chão”, várias músicas haviam sido já testadas ao vivo. Ele apresenta uma unidade e uma maturidade sonora bem interessante. Ele mostra um “corpo de banda” muito forte. Me preocupei bastante com isso porque acho que o grande momento do trabalho acontece no palco. É ali que a expressão verdadeira acontece. Essa interação com o público é muito importante.
“De Pés no Chão” apresenta um repertório bem diverso. Qual foi o critério para a escolha das faixas?
Para cantar uma música, ela precisa ter um significado pra mim. Cada vez mais. No meu repertório, sempre escolhi coisas com as quais eu estivesse envolvida, seja pelo sentimento de alegria, pelo drama. Como não eram composições minhas eu precisava buscar essa relação de algum modo pra que eu pudesse exprimir minha verdade dentro da obra do compositor. São escolhas profundas. Há uma relação bem visceral com algumas das canções. No começo, quando um amigo te convida pra cantar e fazer participações você acaba indo, mas isso muda com o tempo. Hoje em dia prefiro participar apenas de coisas que tenham muito a ver comigo, com o que eu queira dizer, para que tudo o que eu fizer na minha carreira tenha esse sentimento de envolvimento, de sinceridade do que eu busco. Márcia Castro é um sentimento. E é também uma expressão artística. Não se pode fazer as coisas de um modo aleatório. O desenvolvimento de uma carreira depende muito dessa coerência, essa lógica do sentimento pela arte.
Você é uma artista com grande participação em redes pela internet. Como você avalia a importância desses canais para o trabalho com música autoral?
Esses canais são fundamentais hoje em dia. A internet foi uma verdadeira revolução dentro do que nós entendemos como divulgação de música. Para a música independente foi uma mudança geral. Por exemplo, estou fazendo esses shows agora no Paraná em grande parte devido à divulgação do meu trabalho pela internet. Não foi um contato através da gravadora, não existiu nenhuma grande produtora por trás, nada do tipo. Vejo que o Youtube tem sido uma forma muito rápida de pesquisa de músicas. Mesmo com My Space e outras plataformas, o Youtube acaba sendo uma forma mais ágil de ter o primeiro contato com a música de um artista. Quando há um material áudio visual, isso pode causar uma repercussão maior. Minha idéia era fazer um clipe de cada faixa do último disco.
Atualmente você tem uma parceria com a Deckdisc. Eles exercem algum tipo de interferência artística no seu trabalho?
Não, de jeito algum. Eles trabalham mais como “parceiros”. É uma gravadora 100% nacional e eles são muito antenados com o que tem acontecido nessa nova fase da música nacional – como um todo. É uma gravadora que trabalha bem com os “pés no chão”. (risos)
O que você anda ouvindo de artistas novos?
Tenho ouvido o último do Gui Amabis (“Trabalhos Carnivoros”). Gosto muito do Quantic Project, um latino que circula pelo mundo fazendo gravações com diversos artistas e grupos. O último trabalho do Siba (“Avante”) é muito legal também, gosto bastante dele. Tem o “The Moon 1111”, novo do Otto. Acho-o um dos grandes criadores da música atualmente. Ouço bastante Felipe Cordeiro e também um grupo chamado Baiana System – que mistura dub com hip-hop e guitarra baiana. (Tem) Outra banda da Bahia, Opanijé, um grupo que mistura coisas do hip-hop com candomblé, um som bem rico.
Você está a quatro anos morando em São Paulo. Sair da Bahia e ir pra uma cidade na qual sempre acontece tanta coisa deve ter interferido bastante na sua forma de trabalho.
Absolutamente. A mudança pra São Paulo foi muito rica. Embora toda a saudade que eu sinta da Bahia, a cidade de São Paulo trouxe um universo estético e humano muito interessante que foi importante para o desenvolvimento das minhas idéias artísticas. São Paulo é um caldeirão, você encontra gente do Brasil inteiro. São essas experiências que cada cultura leva para a cidade que a torna tão rica. É como se estando longe de casa tivéssemos uma “re-ligação” com nosso lugar de origem. Essa saudade te reaproxima das coisas do lar.
– Bruno Leonel é colaborador da webradio Alma Londrina. Entrevista realizada originalmente para o programa “Batuque na Cozinha”, da webradio (ouça aqui).
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