entrevista de Leonardo Vinhas
“Véu Sublime”. Nome estranho e pouco promissor para uma banda, ainda mais de rock. Mas aí você dá o play e vem aquela sensação de “ok, tem algo a mais nesse som”, aquele não-sei-bem-o-que que te avisa, mesmo antes do refrão, que você não está diante de mais do mesmo. Pois é isso que esse trio de Sorocaba (SP) entrega em seu EP de estreia, “Não É Nenhum Segredo” (2025). Ao transcorrer de “Já Houve”, a primeira faixa do disco, você provavelmente já decidiu que vai ouvir com atenção até o fim – a dedicação não será frustrada.
Ouvindo com mais calma, esse “não-sei-bem-o-que” fica menos nebuloso: as referências da banda passam de Jimi Hendrix a Black Keys de maneira muito natural, sem ficar parecendo um enfileiramento de decalques bem sacados. Riffs dominam e conduzem as canções, com ambiências que, em alguns casos, conseguem soar bluesy e stoner ao mesmo tempo. Tem até certa psicodelia, especialmente na boogarínica faixa título, mas coisa de quem fumou um do bom antes de acertar o arranjo, e não de quem está fritando com drogas sintéticas.
A música do Véu Sublime não se demora sobre si mesma: ela se atém ao que cada composição precisa. Composições, aliás, todas de autoria do vocalista e guitarrista Bruno RK. Mas fiel à sua origem – uma jam entre amigos – a banda entende as canções como uma criação coletiva, com a participação decisiva dos outros integrantes, o baixista Dion Castro e o baterista Yago Amaral. No caso do EP, merece destaque também o produtor Well Mendes, que conseguiu dar mais camadas e volume às faixas, sem privá-las da espontaneidade e do groove do trio.
Por chamada de vídeo, Bruno RK contou mais sobre a gênese do EP, as intenções da banda e as razões para a longevidade da movimentação roqueira em Sorocaba. Você vai perceber pela leitura, mas não custa destacar que a conversa foi toda permeada por amor e entusiasmo à música. Em tempos de gente gravando singles formulaicos para tentar surfar nas marés dos algoritmos, é uma delícia topar com uma banda estreante que pensa e age diferente.
Sorocaba tem uma coisa quase mítica no que diz respeito ao underground local: a movimentação sempre pareceu muito forte, com espaços para bandas que têm tradição, festivais locais, bares que abrem espaço para bandas novas. Claro, com períodos de maior e menor intensidade, mas inegavelmente uma movimentação contínua. Como o Véu Sublime se encaixa nessa tradição?
Isso que você falou é uma parada muito legal mesmo. Desde a época que meu tio tocava na banda dele nos anos 2000, a Tribo Nativa, ele já conhecia a Wry, sabe? Ele sempre me falava deles, e eu cresci vendo bandas daqui. O que você falou é muito verdade, em Sorocaba vai se passando o tempo e sempre vêm bandas novas. Conheci a cena underground aqui de Sorocaba com a ventilas, que é uma banda que eu amo. Sou amigo do Johnny (João Marcos) e do Zana (Matheus Zanetti, ambos integrantes do duo em questão), e foi por causa deles que conheci toda essa cena. E é muito interessante, porque a gente se encaixa nessa cena. Acho que aqui tem espaço para muitos sons diferentes dentro do rock: tem a cena do metal, que tem a Vértices, que é mais para o hardcore cruzado com metal. Tem a gente, que faz um rock alternativo que mistura funk com soul com Jimi Hendrix e tudo… Aí tem a galera um pouco mais do indie, como a ventilas, tem a galera do shoegaze, que é a cortisol. Tem espaço para todo mundo dentro da cena daqui, sabe? É muito legal quando a gente faz rolê junto, porque são vários estilos diferentes dentro do mesmo dia, cria uma variedade muito legal. Os públicos também acabam sendo variados. E não são muitas bandas que fazem o som que a gente faz, pelo menos aqui em Sorocaba…
Vamos esmiuçar esse som, então: tem a coisa setentista que você falou, tem o groove bem predominante, o apreço pela canção, mesmo com o volume no talo. Imagino que seria fácil deixar tudo entrar numa digressão instrumental e chamar de “psicodelia”, mas parece que vocês vão na direção oposta a isso, mantendo a canção com o que ela realmente necessita.
Isso! Sou eu que escrevo as músicas, e sempre que escutei rock brasileiro, notei que existe um padrão nas músicas que eu gosto. Procurei trazer esse padrão para a minha música: tudo que eu escrevo é de acordo com as músicas que eu gosto. A primeira banda de rock brasileiro que eu amei foi os Paralamas! Quando ouvi “O Passo do Lui” (segundo álbum da banda, de 1985) pela primeira vez, aquilo ali para mim foi uma parada que eu fiquei. “caralho, mano, isso aqui é muito foda!” As estruturas são muito boas, os refrões são muito bons, é tudo muito bom. Foi aí que bateu assim um negócio de: “putz, mano, preciso pensar em formas de como dar a minha cara para essa estrutura aqui”. Claro que tem músicas com partes que pegam mais, tipo um refrão mais forte, um verso mais forte, mas a composição está ali, sabe? Mas essa questão da estrutura da canção em si é um negócio no qual a gente sempre pensou. Não que a gente vá se repetir, elas vão ser variadas. Por exemplo, “Não É Nenhum Segredo” começa com uma intro e tal, só que ao invés de ser verso, pré-refrão e refrão, a estrutura é verso, verso, pré-refrão, refrão e o solo, aí acaba. A gente às vezes faz essas brincadeiras. Em “Já Houve” também tem essa parada: tem o riff, o verso, o pré-refrão, o refrão. Aí a segunda parte é o verso, e o solo no que deveria ser a segunda parte do verso, e aí vem o refrão de novo. Algumas bandas que eu gosto têm isso também, tipo Sophia Chablau e Uma Enorme Perda de Tempo. Essa é uma banda que me inspira muito atualmente, o show deles que vi aqui em Sorocaba foi um dos melhores da minha vida. Mas é uma questão de gosto, eu sei. E eu sou uma pessoa que tem um problema: eu enjoo muito fácil de algumas coisas, inclusive de algumas que eu gosto (risos). Então já sei que vai ter hora em que vou enjoar de fazer músicas desse jeito e vou começar a brincar de outro, sabe? A gente sempre tenta explorar novas coisas, pinta uma inspiração diferente e a gente decide fazer mais músicas naquele estilo. Estamos compondo as músicas que vão entrar no nosso álbum e elas já são de uma linhagem um tanto diferente, uma outra característica sonora.
E nada é definitivo, né? Ouço nas músicas de vocês um espaço mais arejado, dá para mudar ao vivo, transformar o arranjo, dar outra leitura, encontrar novos caminhos…
A gente faz exatamente isso! (risos) Por exemplo, em “Tempestade”, a gente sempre muda aquela parte mais rápida, na qual vem o riff de guitarra. Até porque, no início, essa parte nem existia (risos). Chegou um ensaio que foi antes de um show, o Dion tocou esse riff e eu falei: “Caralho, mano, isso aqui tá muito da hora, vamos fazer!”. Fomos tocando, uma hora falamos “puta merda, velho, é isso a música”. Só faltava isso para termina-la. Mas ao vivo, a gente faz essa parte meio doom metal, lentona, sabe? E também teve um outro ensaio, esse antes da gente gravar essa música, no qual pintou o jazz que foi para o EP (a vinheta “Resquícios”). A gente improvisou do nada, com o Dion puxando no baixo, aí o Yago foi seguindo na bateria e tipo, eu entrei assim com aquela guitarra muito torta, fazendo umas escalas meio tom acima… Ficou da hora e decidimos gravar. Mas a gente é muito aberto a improvisar. O Dion mesmo, ele nunca toca a mesma linha de baixo, sempre muda alguma coisa. Então, sempre que você for ver ao vivo, vai ter uma coisa diferente do EP. O Yago também, ele sempre muda alguma coisa na bateria. Como eu canto e toco, eu não tenho tanto espaço para mudar muitas coisas, porque eu meio que trabalho com padrões, sabe? Quando estou tocando e cantando, eu tenho que saber exatamente o que eu vou fazer para não errar. Mas se estamos só no instrumental, eu também abro espaço para umas coisas novas na guitarra.
E como você pensa a sua voz dentro do som da banda?
Eu comecei a cantar na banda porque ou eu cantava ou não tinha ninguém pra isso (risos). Demorou muito tempo para eu pegar exatamente como eu ia cantar as músicas. Quem não tem muito o costume de cantar não conhece a própria voz, e esse era meu caso. Levei um tempo pra conhecer meu timbre, a região da voz. Escrevi muitas músicas em que meu vocal era muito engessado, o que eu queria fazer não era o que eu estava pensando. Depois que comecei a escutar o Mac De Marco, a coisa mudou. Ele não canta bem, nem tem uma voz tão boa, não é tão técnico, mas gosto do jeito como ele interpreta as músicas dele. Ele é uma grande inspiração pra mim nesse sentido. E depois que eu comecei a reparar assim no jeito que ele canta, eu falei: “putz, eu posso fazer um negócio mais livre!” Sempre que eu vou cantar, penso em como posso colocar minha voz como um complemento do instrumental, e não a voz como algo à parte. Penso nela complementando a harmonia, tanto que as melodias vocais conversam muito com o que tá acontecendo na harmonia. Eu sei que não vou levar minha voz pra um negócio meio solista, tipo o Freddie Mercury no Queen, sabe? (risos) Ali é outro papo, a harmonia acontecendo aqui e a voz dele está fazendo uma parada totalmente diferente. Acho foda, eu queria fazer, mas não consigo de jeito nenhum, sou muito nervoso assim para cantar, sou bem inseguro com a minha voz, principalmente ao vivo.
Você falou da Sophia Chablau agora há pouco, Com quais outras bandas você vê a Véu Sublime tendo um diálogo? Com quem mais vocês se identificam?
Eu gosto muito de Maré Tardia, uma banda do Espírito Santo. Acho muito foda mesmo. A gente inclusive já conversou no Instagram de tentar fazer um rolê junto, talvez saia esse ano. Vi alguns vídeos dele ao vivo e, cara! A energia deles ao vivo é foda. É uma banda que tem muito potencial. Nos dias atuais, os dois que eu mais escuto são eles e a Sophia Chablau, mas tem uma outra banda da qual eu gosto muito, mas acho que é muito diferente do nosso estilo, que é a terraplana.
Leonardo Vinhas (@leovinhas) é produtor e autor do livro “O Evangelho Segundo Odair: Censura, Igreja e O Filho de José e Maria“.