texto de Leandro Luz
Selecionado para a Mostra Olhos Livres da 28ª Mostra de Cinema de Tiradentes, Rodrigo Aragão esteve presente na cidade mineira para apresentar o seu novo longa-metragem intitulado “Prédio Vazio” (2025). No filme, uma jovem mulher decide sair em busca de sua mãe no último dia de Carnaval em Guarapari após receber uma ligação que a leva a um edifício decrépito e aparentemente abandonado, a não ser pela presença delirante de uma estranha zeladora.
Técnico de efeitos especiais com mais de 30 anos de carreira, reconhecido como um dos maiores de seu ramo no Brasil, Aragão tem uma trajetória ímpar no cinema brasileiro, seja pelo seu trabalho em relevantes produções brasileiras insólitas feitas por terceiros, como “Enterre Seus Mortos” (Marco Dutra, 2024) e “O Clube dos Canibais” (Guto Parente, 2018), seja na artesania de seus próprios projetos capitaneados pela sua produtora, Fábulas Filmes. São diversas peças de teatro e curtas-metragens nas costas, além de 7 longas-metragens que já circularam mais de 100 festivais pelo mundo e conquistaram mais de 30 prêmios: “Mangue Negro”, “A Noite do Chupacabras”, “Mar Negro”, “As Fábulas Negras”, “A Mata Negra”, “O Cemitério das Almas Perdidas” e “Prédio Vazio”, este último seu mais recente trabalho e o primeiro a ser ambientado em um cenário urbano.
Nascido e criado no Espírito Santo, em uma vila de pescadores recheada de causos e crendices, Aragão aprendeu desde muito cedo a contar histórias e a querer transformá-las em cinema, isto porque seu pai era dono e projecionista de uma pequena sala, garantindo ao menino uma entrada precoce no mundo das fitas brasileiras. Começou a trabalhar com maquiagem e efeitos especiais ainda na adolescência, fruto de algumas oficinas das quais participou, e o salto para diretor de cinema, ainda que tenha demorado um pouco para acontecer, o catapultou para o front da produção contemporânea de filmes fantásticos no Brasil, especialmente os de terror.
Disputado tanto por cineastas de peso quanto por jovens realizadores periféricos, Aragão circulou o país ministrando oficinas de cinema e deixando “filhotes” por onde passou. Se hoje um cineasta como Joel Caetano está trilhando o seu próprio caminho, pode ter certeza que tem dedo do capixaba nesse acúmulo de sabedoria e nessa vontade de se expressar por meio do gore e da diversão sangrenta. Para além da juventude, Rodrigo Aragão sempre esteve muito próximo de cineastas que o precederam, como é o caso de Petter Baiestorf e, evidentemente, o seu maior ídolo e a sua grande referência, José Mojica Marins. Aragão e Mojica fizeram juntos “O Saci”, seguimento do filme “As Fábulas Negras” (2015), no qual Aragão escreveu e produziu, tendo sido este o último trabalho dirigido pelo mestre do horror brasileiro.
Após fazer filmes que variaram, em termos de orçamento, de R$ 50.000,00 a R$ 2.000.000,00, sendo aquele o mais comum e frequente, Aragão está atualmente envolvido no projeto “Folclórica”, seu primeiro filme infanto-juvenil. Seu sonho de ter o seu próprio estúdio cinematográfico para fazer os seus filmes e os filmes dos companheiros de profissão segue firme e forte, aguardando o financiamento necessário para que consiga transformar um velho galpão em um espaço de arte e de resistência inédito em seu estado.
“Prédio Vazio”, belo filme sobre maternidade, determinação e a nossa incapacidade de lidar com os próprios erros, ainda não tem data de estreia no circuito comercial. Segundo o diretor, o filme irá percorrer mostras e festivais pelo Brasil e pelo mundo ao longo do primeiro semestre e, provavelmente na altura das comemorações do halloween, irá tentar o circuito. Ainda que tenha sido anunciado depois desta entrevista, que você lê a seguir, o filme ganhou o prêmio de contrato de distribuição no valor de R$100.000,00, oferecido pela Retrato Filmes.
Em conversa durante a realização da 28ª Mostra de Cinema de Tiradentes, entre uma tempestade e outra que assolou a cidade durante os 9 dias de programação, Rodrigo Aragão falou sobre a importância dos realizadores – no Brasil e no mundo – assumirem que estão fazendo cinema de gênero, sem que sejam necessários subterfúgios que poderiam facilmente valorizar as obras diante dos olhos do grande público. Ainda, comentou acerca dos desafios enfrentados para financiar projetos de horror no Brasil, o deleite de poder trabalhar com a “dama do cinema de terror brasileiro” Gilda Nomacce e da experiência singular de se fazer um longa-metragem em uma “cidade pequena” a partir da metodologia do “filme-escola”.
“Mangue Negro”. Lá se vão quase 20 anos! Em 2025, seu primeiro longa-metragem completa 17 anos, para ser mais exato. Sei que é uma pergunta ampla, mas o que você acha que mudou de 2008 para cá, tanto na cadeia produtiva quanto na relação do espectador com o cinema brasileiro de horror feito no Brasil?
“Mangue Negro” foi um filme totalmente independente, movido totalmente por paixão. É um filme literalmente do quintal da minha casa, feito durante três anos. Acho que o principal era uma frase que eu ouvia de todo mundo quando falava que estava fazendo um filme de terror: “Filme de terror? Não se faz filme de terror no Brasil”. Só o Mojica, mas ele também não está fazendo. Havia uma estranheza. Era quase como se você estivesse fazendo uma coisa alienígena. Hoje não é mais tão estranho devido a democratização, a ampliação das leis de incentivo, a democratização técnica de equipamento, de hoje você ter acesso a equipamentos com qualidade de imagem muito grande. A gente ainda tem um longo caminho pela frente, mas esses últimos 17 anos foram muito bons. Acho que estamos no nosso melhor momento para o cinema de gênero. Mas, como digo a todos, a gente ainda tem que pegar uma grande fatia do público que ainda não descobriu esses filmes. Esse é o maior desafio.
Nesse gancho, falando a respeito de contextos de produção, muitos pesquisadores e estudiosos consideram você um artesão do cinema de horror feito no Brasil. Ainda que o cinema brasileiro, para além do Mojica, nos anos 1960, 1970, 1980, até chegar nos dias de hoje, não tenha uma tradição de se relacionar com o cinema de horror de forma mais direta, o horror sempre esteve ali. Se você for pensar na produção da Boca do Lixo, por exemplo, e pegar os filmes de Jean Garrett… como o “Excitação” (1976), por exemplo, entre outros, o horror sempre atravessou um pouco. Como você acha que o contexto de produção determina o que o filme é ou o que ele pode ser?
Acho que o terror atravessou essa época, que é um gênero que sempre foi amado por muita gente, mas havia uma coisa: o terror muitas vezes teve que se disfarçar de outros gêneros. Como você falou, o “Excitação”, da Boca do Lixo… muitas vezes os filmes eram de terror, mas eram disfarçados de erótico… para ser vendido. Nós passamos por uma época, também, que é o que eu chamo de “terror envergonhado”, que é esse terror que o diretor já vai falar: “olha, mas o meu filme não é um filme de terror, não, é um suspense psicológico”. Como se o terror fosse uma coisa menor. Havia uma certa vergonha de você falar que é um filme de terror. Talvez seja por isso que a minha fala de ontem (na Mostra de Tiradentes) começou com “este é um filme de terror brasileiro”. É muito importante a gente se assumir, entender que temos fãs do gênero e que os filmes de terror brasileiros são tão bons quanto os de outros países. Essa é a grande questão, da gente poder fazer esse tipo de filme. E muitas vezes até são filmes que têm que ter determinadas temáticas ou serem apresentados de determinadas maneiras, até para conseguir ganhar um edital.
Uma necessidade mercadológica.
É… de como você vai financiar, porque o terror tem várias características. Ele tem fãs, ele chama a atenção, mas muitas vezes você tem dificuldade de conseguir patrocínio, porque uma empresa não quer colocar o nome num filme de terror e muitas vezes, em alguns editais, determinadas bancas não dão prêmios para filmes de terror porque acham que é um gênero menor. E eu acho que essa é a grande mudança que a gente precisa (passar)… de entender que todo grande cineasta já fez terror. Kubrick, Spielberg, todo mundo que você pensar já fez. Que é um gênero difícil, que é um gênero nobre. E que é um gênero importante para o mercado. Então, talvez o terror brasileiro ainda precise perder um pouco da vergonha para que ele possa aparecer mais e para que ela consiga encontrar o seu público.

E o “Prédio Vazio”? Ele teve financiamento do Funcultura, do Espírito Santo. E também teve uma questão muito peculiar com a produção, que deve ter sido diferente de todas as outras, que é o que vocês chamam de “filme-escola”, certo? Me conta como foi isso.
O “filme-escola” é a maneira que a gente encontrou de produzir no Espírito Santo, ou seja, de formar profissionais em um filme que tem uma grande demanda de efeitos especiais, de cenografia, de um tipo de interpretação diferente, sem precisar importar profissionais do Rio, de São Paulo. Foram oito oficinas para 280 alunos, onde os os alunos que a gente identificou com a maior capacidade foram incluídos, e isso formou 50% da equipe. Então, esses alunos tiveram a experiência de conhecer um set na prática, e isso foi ótimo para eles e foi ótimo para o filme. Acho que para quem quiser produzir agora no Espírito Santo, eu acho que isso é uma linha de raciocínio. Esses alunos já foram para outros filmes. Muitos deles já entraram no mercado com força e isso é maravilhoso. Aconselho realizadores de outros estados que têm dificuldade para encontrar profissionais no estado a fazerem coisas parecidas, porque funcionou muito bem para mim e pretendo continuar com esse modelo nos meus próximos trabalhos.
Você já teve experiências fazendo oficinas de maquiagens e efeitos no Brasil inteiro. Imagino que isso tenha te ajudado nessa condução, né?
É, é.
Uma coisa que me pareceu muito marcante na sessão de ontem na tenda [do filme “Prédio Vazio”], e pensando no contexto de Tiradentes, que é um contexto sempre duro, difícil, é que os filmes até aqui estavam sendo muito… filmes de homens, sobre homens. E aí você chega para apresentar o seu filme e tem, sei lá, umas cinco, seis, sete, dez mulheres do seu lado.
É maravilhoso!

Queria que você comentasse um pouco a participação delas nesse filme, porque as protagonistas são femininas, as questões são em parte femininas. E queria que você começasse a responder a partir, óbvio, do grande nome do seu filme que é a Gilda [Nomacce].
Eu acho que as mulheres são incríveis. Elas são muito boas de trabalhar, assim. E, realmente, esse é um filme com a grande parte da equipe feminina. Até nessas oficinas as mulheres se destacaram, então a gente passou a ter uma equipe técnica formada mais por mulheres, o que foi emocionante. E a Gilda… eu sempre fui um admirador do trabalho dela. Eu tive a oportunidade de fazer um capítulo de uma série onde pude dirigi-la em São Paulo, e imediatamente falei que queria trabalhar (com ela). Ela se destaca das outras pessoas, não só pelo talento impressionante, mas como uma pessoa muito fácil, muito carinhosa, muito sensível para trabalhar. E eu acho que a Gilda hoje é a grande dama do cinema de terror brasileiro. Ela merece esse título. Espero que esse filme seja mais um tijolinho na carreira dela. Só tenho orgulho de ter trabalhado com essa mulher. Eu espero poder trabalhar com ela em mais filmes.
E você falou muito no debate a respeito da sua relação com a sua esposa, que é a sua produtora ao mesmo tempo. Como é essa relação com ela, no seu dia a dia, de pensar os filmes… de pensar a vida e de pensar os filmes? Tá tudo junto?
Isso é maravilhoso! A Mayra é a produtora dos meus filmes, a gente se conheceu no meu primeiro filme e estamos juntos…
Mais ou menos a idade do “Mangue Negro” é a idade que vocês tem de casado?
É exatamente isso. E, cara, eu faço a parte fácil. Eu sou a parte criativa e ela é quem cuida de toda a parte complicada. Então eu só posso ser muito fã dela porque ela é quem produz, quem organiza, planeja, monta os projetos. Eu tenho muita sorte de ter encontrado essa parceira, essa mulher, e que me fez admirar mais todas as mulheres.

Entrando mais a fundo no “Prédio Vazio”, você falou também sobre algumas referências para o filme. “Suspiria”, enfim, dá para perceber, do ponto de vista da direção de arte. Fiquei com uma curiosidade muito pontual: aquelas almas, no momento em que elas aparecem, me lembrou muito “Ghost” (1990).
(risos)
Você lembra de…?
Lembro sim (risos). Isso foi conversado.
Apesar do dramalhão, tem algumas cenas específicas, na hora em que os espíritos vêm buscar as almas das pessoas. Me pareceu um arranjo muito… tecnicamente parecido.
É, foi uma coisa que aconteceu… essas oficinas, todos esses fantasmas vieram das oficinas também. Porque o elenco é pequeno, e é um processo complicado essa questão dos fantasmas não serem malvados. Eles são famintos e tal. Então, assim, a questão da caracterização. Nós queríamos uma caracterização dessaturada, ou seja, quase preto e branco. Tanto de figurino quanto de maquiagem, eles são bem cinzas. Mas eles ficaram parecendo muito zumbis. No primeiro corte, sem efeitos, eles ficaram parecendo muito com zumbis, então a gente teve que procurar alguma linguagem para tirar um pouco a coisa dos zumbis e jogar para os fantasmas. E eu confesso para você que a gente montou e alguém me falou isso: “olha, tá parecendo ‘Ghost’, hein? (risos) E a gente tentou até depois colocar umas coisinhas, mas acho que isso é do imaginário, cara. Quando você pensa em um vulto, uma sombra, uma coisa, a gente bate no que eles fizeram. Então foi meio inconsciente, na verdade, mas…
Mas eu falei como um elogio, não como um demérito, porque… bom, eu cresci vendo filmes de terror também, essa coisa de criança, antigamente, que tinha essa coisa com a televisão.
Acho que tá ali, né?
Eu amo filmes de horror e tudo, mas eu me lembro de ficar muito assustado com filmes, com cenas às vezes horroríficas, mas que não são de filmes de terror. Então, não sei, essas cenas mesmo do “Ghost” me aterrorizavam.
As almas levando…
É, sei lá, os Oompa-Loompas do “A Fantástica Fábrica de Chocolate” era uma coisa que me assustava quando criança.
Todas as crianças. Aquilo é um trauma coletivo para todas as crianças (risos).
Rodrigo, você disse que ontem foi a primeira sessão pública do filme. Eu queria saber como você sentiu a sessão, porque tem sessões que funcionam e tem sessões que não funcionam. E me pareceu que a sessão de ontem funcionou. Eu vi pessoas rindo. Vi uma fileira de garotas na minha frente se assustando. Hoje, no debate, tinha uma menina muito emocionada que deu um depoimento… queria que você trouxesse um pouco a sua impressão dessa sessão.
Estou muito feliz com a sessão de Tiradentes. Eu também não sabia como um público tão específico e tão especializado ia reagir a um filme de terror tão… feito para ser divertido, feito para ser popular. Então, eu acho que como uma primeira sessão foi melhor do que as minhas melhores expectativas, mesmo. Sinto mais fé, mais esperança que esse filme vá ter caminhos abertos, assim. E continuo nesse grande desafio, que para mim é o grande desafio do cinema brasileiro de fazer esse filme encontrar o público dele dentro de uma parte muito difícil que é a distribuição. Encontrar as janelas! E essa é a minha tarefa durante 2025. Fazer esse filme encontrar o público dele. Mas Tiradentes foi o melhor começo que eu podia ter.
Para fechar, você dedicou a sessão ao Mojica, óbvio. Quer dizer, não sei se é óbvio, mas eu acompanho o seu trabalho há muito tempo e acho que foi importante. Não vou te perguntar qual a sua relação com Mojica, porque isso muita gente já sabe, você já respondeu em muitas entrevistas, mas eu queria fazer uma pergunta mais específica sobre o “Prédio Vazio” e o Mojica. Eu senti, nesse filme, talvez mais do que em todos os seus outros filmes, uma espécie de atmosfera de delírio e de loucura, muito por conta da interpretação da Gilda, mas também pelo ambiente que se trata, que me lembra muito os filmes do Mojica. Não só os filmes do Zé do Caixão, mas os outros filmes que ele fez também: “Finis Hominis”, “O Despertar da Besta”, uma coisa psicodélica, assim. Isso foi consciente durante ou você percebeu depois?
Cara, não foi. Eu acho que eu sou… eu me reconheci tão contaminado pelo trabalho do Mojica que eu confesso que, por exemplo, no “O Cemitério das Almas Perdidas” eu tive cenas que eu falei: “eu vou homenagear o Mojica, eu vou fazer cena dos olhos injetados de sangue e tal, vou fazer uma homenagem”. E no “Prédio Vazio” isso não aconteceu. Durante a montagem, assim, principalmente a sequência final, reconheci ali a descida ao inferno dele, do “Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver”. E confesso que eu não pensei nisso durante o processo, mas depois eu vi que ele tava ali. Então eu falo que o Mojica… ele está presente na minha vida, sempre. Eu acho que esse filme mostrou isso, que mesmo inconsciente, ele estava ali… e ontem foi uma coisa meio especial, porque eu não estava pensando em falar dele, e essas lembranças de Facebook me mostraram que há dez anos atrás eu tava ali naquele mesmo lugar… o último filme que ele fez, então me bateu essa…
O episódio do Saci [do filme “As Fábulas Negras”].
É, exatamente. Exatamente dez anos atrás. Eu não tinha… eu não tinha pensado nisso também.
– Leandro Luz (@leandro_luz) escreve e pesquisa sobre cinema desde 2010. Coordena os projetos de audiovisual do Sesc RJ desde 2019 e exerce atividades de crítica nos podcasts Plano-Sequência e 1 disco, 1 filme.