HQ: Feito com canetas esferográficas, “Minha coisa favorita é monstro” é um verdadeiro desbunde visual

texto de Gabriel Pinheiro

Karen Reyes é uma garota de 10 anos alucinada com monstros. Quadrinhos, revistas pulp, filmes de terror B, os monstros orbitam a cabeça da menina enquanto ela transita por uma Chicago em fins dos anos 1960. Entre passeios pelo Museu de Arte da cidade, conversas com o irmão e a mãe no apartamento-porão onde vivem, leituras de histórias assustadoras e encontros com amigos — tanto reais quanto imaginários — a garota desenha tudo o que vive e observa em seu caderno. Inclusive ela própria. Não como os outros a enxergam, mas como ela mesma se vê: uma jovem lobismoça, entre monstro e ser humano. “Minha coisa favorita é monstro” é uma graphic novel de Emil Farris publicada em dois volumes, cujo “Livro dois” acaba de ser publicado pela Quadrinhos na Cia, com tradução de Érico Assis (Emil venceu o Prêmio Eisner com o Volume 1).

Um acontecimento repentino domina os interesses da personagem: um suposto assassinato. Sua misteriosa e sedutora vizinha é encontrada morta no decadente prédio onde vivem. Munida de uma capa e chapéu de detetive, Karen Reyes dá início a uma investigação que a levará ao encontro de diferentes monstros, do passado e do presente, do mundo visível e também do mundo invisível.

“Minha coisa favorita é monstro” é um verdadeiro desbunde visual. Emil Farris trabalha apenas com canetas esferográficas, num trabalho detalhista, vigoroso, colorido e estonteante. As páginas pautadas do quadrinho emulam tanto o próprio caderno onde Emil desenhou cada um dos quadros da obra, quanto o caderno da protagonista: mergulhamos na investigação da garota por meio de suas próprias anotações e desenhos, descortinando uma Chicago em plena efervescência política e cultural em 1968.

Karen Reyes desenha tudo aquilo que lhe interessa dia após dia, sejam detalhes e cenas que conecta ao crime que investiga ou acontecimentos muitas vezes inexplicáveis. A cada visita ao Museu e no encontro com diferentes obras de arte fundamentais que ali observa — de mestres como Goya e Picasso — a jovem lobismoça celebra e questiona a própria história da arte, sobretudo na representação do feminino — sexualizado ou visto como ameaça à masculinidade — ao longo dos séculos. Mergulhamos, por vezes, no interior de tais obras com a personagem. “Passei a vida vendo imagens que mostram a mulher que você acha ‘sexy’ sendo machucada. Isso me passa uma mensagem e acho que a mensagem é que as mulheres ficam melhores quando alguém machuca a gente”.

“Minha coisa favorita é monstro” é um épico em quadrinhos. Este trabalho incansável e virtuoso celebra a arte e o seu poder de enfrentamento ao ódio e ao medo causados por certos monstros que não são aqueles adorados por sua jovem protagonista. Em mais de 800 páginas, Emil Ferris reflete acerca de monstros muito reais e próximos. Do presente da narrativa, com o racismo e a transfobia inerente à sociedade norte-americana em fins dos anos 1960 – da negação à tudo e todos vistos como diferentes ou “monstruosos” – ao passado do Holocausto na Segunda Guerra Mundial, o medo e o horror invadem a vida cotidiana da garota, causados por monstros que assombram justamente pelo fato de serem humanos. “Acho que a arte e as histórias são as maiores invenções dos seres humanos. A melhor maneira de ser um monstro forte que derrota o mal é fazer arte e contar histórias”.

– Gabriel Pinheiro é jornalista. Escreve sobre suas leituras também no Instagram: @tgpgabriel

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