texto de Leandro Luz
O cineasta francês Alain Guiraudie, diretor de “Misericórdia” (“Miséricorde”, 2024), vem realizando, há mais de duas décadas, obras que se debruçam sobre os perigos e os mistérios da paixão. Neste seu último trabalho, indicado à Queer Palm no Festival de Cannes e em oito categorias no César (o Oscar francês), o desejo se mistura com a melancolia de uma paisagem – geográfica e emocional – acachapante. Seja pelos conflitos internos do protagonista ou pelos caminhos densos da floresta pelos quais a câmera se esgueira muitas vezes durante o filme, somos confrontados com mudanças de rota inesperadas. Nada é o que parece. E tudo pode acontecer na medida do impossível.
Assistir a um filme desse tipo, capaz de carregar essa intempestividade em seu cerne, está cada vez mais raro no cinema hegemônico mundial. Em “Misericórdia”, assim como em “Um Estranho no Lago” (2013), por exemplo, as ações das personagens e as revelações de uma trama intrincada e certamente mais complexa do que a superfície consegue dar a ver são modeladas pelo diretor de maneira a preservar um quê de charada, quase impenetrável, que se desvela aos poucos aos olhos e aos ouvidos do espectador. A longa sequência inicial de Jérémie, nosso protagonista, chegando à cidade nos prepara relativamente para o que está por vir. A câmera é colocada no para-brisas do carro que trafega por uma estrada verde e sinuosa. A paisagem bucólica da floresta que cerca a pequena comuna francesa (Saint-Martial) ao mesmo tempo seduz e incomoda. Do ponto de vista psicológico, descobriremos mais adiante na trama que ela também trará uma dimensão aterradora para o protagonista.
Em resumo, a trama se passa em um curto período de tempo – alguns dias, talvez algumas semanas, já que as elipses são tão misteriosas quanto o que é efetivamente filmado – e acompanha Jerémie, um homem que volta para a sua cidade de origem para comparecer ao funeral de seu falecido empregador, um padeiro local conhecido por toda a comunidade. A princípio, o protagonista prevê o seu retorno para o mesmo dia, mas a receptividade que encontra na casa da viúva e solitária Martine, que o acolhe como um filho, o faz querer ficar um pouco mais. O problema é que o filho de Martine, Vincent, parece não aceitar muito bem as emoções que a presença do colega de infância o causam, transformando com muita rapidez o que era nostálgico e divertido em uma ameaça estúrdia.
As relações entre pares são muito importantes para o roteiro e para a encenação de Guiraudie, que adota uma composição dual desde o princípio: Jérémie e Vincent em sua relação nostálgica, explosiva e violenta; já Jerémie e o vizinho dançam entre o medo e o desejo; a relação platônica entre Jerémie e o padre, por sua vez, é um ponto de ebulição do filme; por fim, Jerémie e a viúva Martine se conectam em um prisma complexo e repleto de reviravoltas. A passividade demonstrada pelo ator Félix Kysyl, ao mesmo tempo que preserva uma tonalidade libertina ou no mínimo lasciva em sua interpretação, é fundamental para que consigamos absorver o conflito, o medo, a angústia e, por fim, o prazer do protagonista. Guiraudie se concentra nesse jogo em duo, mais interessado no que cada uma das ligações podem provocar em termos de fricção e acúmulo do que no que um conjunto, uma coletividade poderia trazer de maciço, de compacto.
Um exemplo curioso de como essas relações vão se dando aos poucos, uma após a outra, são os passeios que Jerémie empreende pela floresta com o suposto objetivo de colher cogumelos. No início, esse pretexto serve para desenvolver o elo entre ele e Vincent, e é bonito ver como a própria paisagem colabora na mudança de temperatura desse relacionamento, que evolui rapidamente de uma frágil amizade para uma raiva acumulada e desmedida. Depois, Jerémie passa a cruzar o espaço também na companhia do padre, e a cada vez em que se encontram a repetição do cenário revela o interesse pelo atrito, nunca pela conformidade.
Para quem assistiu ao filme – e a partir daqui pode ser que alguns spoilers atrapalhem a sua experiência, caso ainda não tenha assistido -, é muito evidente como a própria busca pelos cogumelos é um elemento desestabilizador muito bem usado pelo roteiro, pois são nessas cenas em que o desenvolvimento de uma atmosfera aterradora se torna ainda maior. Os cogumelos passam a crescer na superfície do terreno no qual Vincent foi enterrado por Jérémie. A culpa e o medo de ser descoberto se misturam. A adrenalina é alimentada por uma sexualidade que permeia todas essas duplas que, em comum, possuem apenas a presença de Jerémie. Uma sexualidade, aliás, representada de forma muito direta, inteligível, ainda que nunca descomplicada.
Se você mora em uma cidade do interior, provinciana por natureza, o que há de mais interessante para ser feito? A tensão sexual, quase sempre unilateral, cresce entre Jérémie e o vizinho, entre ele e o padre, ele e a viúva. E se confunde com pulsão de morte quando o centro emocional da relação entre Jerémie e Vincent ocupa o interesse principal da história – há qualquer coisa no diálogo entre os dois que deixa subentendido algum acontecimento mais íntimo no passado. Em determinada cena, o protagonista precisa se esconder debaixo dos cobertores da cama do padre, que Guiraudie não se furta de filmar com frontalidade (o esconderijo é esdrúxulo, o pau duro do padre mais ainda). Em outra, lá para o final do filme, a viúva se deixa seduzir por Jerémie – apreensão demonstrada logo no início por Vincent, cozinhada em banho maria por Guiraudie até que a brecha é transformada em cachoeira, jorrando níveis altíssimos de excitação lá para os 15 minutos finais.
Por fim, um último ponto incontornável de “Misericórdia”. O roteiro se estrutura em torno de uma ação recorrente do protagonista: ele acorda na pálida e modorrenta madrugada da cidade, em uma cama que não é sua, em um corpo que sofre amotinação por onde circula. Em determinado instante do terceiro ato, o filme parece espelhar o primeiro, mas logo dá uma guinada para outra direção. Na primeira encarnação da sequência, Jérémie é acordado com Vincent entrando sem aviso – e sem consentimento – em seu quarto. Em seguida, em outra noite, Jerémie tranca a porta para evitar que o amigo entre. Depois, em outra noite subsequente, ele se esconde para surpreender Vincent. Vemos quase as mesmas ações se repetirem com outra personagem depois, o policial que desconfia que Jerémie poderia ter assinado Vincent. O modus operandi é o mesmo, mas as pequenas oscilações, os mínimos deslocamentos nos fazem pensar que talvez estejamos dentro de um sonho. O policial que visita Jérémie, assim como Vincent o visitou alguns dias antes, se aproxima de uma ideia de sonho ou de realidade? Estaria o filme nos enganando de maneira tão descarada? O filme, na verdade, está mais engajado em brincar com essa noção onírica, ainda que dê muitos indícios para uma leitura realista. A ambiguidade, declaradamente perseguida por Guiraudie, inunda, em retrospecto, o filme inteiro. “Misericórdia”, enfim, se ergue gigantesco e esfíngico diante de nós.
– Leandro Luz (@leandro_luz) escreve e pesquisa sobre cinema desde 2010. Coordena os projetos de audiovisual do Sesc RJ desde 2019 e exerce atividades de crítica nos podcasts Plano-Sequência e 1 disco, 1 filme.