texto de Renan Guerra
O centro de São Paulo é terreno fértil para as mais diferentes narrativas reais ou fictícias. É o palco de uma história que mescla opulência e degradação, misturando personagens dos mais diversos possíveis, tanto que se tornou espaço fundamental de circulação para migrantes, refugiados, trabalhadores informais, pessoas LGBTs, profissionais do sexo, usuários de drogas, todos convivendo nesse território que é difícil de resumir para quem vem de fora. É para o centro que Wellington (João Pedro Mariano), de 18 anos, retorna após passar dois anos na Fundação Casa. Deixado para trás por seus pais, o jovem decide então enfrentar esse território urbano em busca de construir alguma possibilidade de existência a partir dali. Esse é o ponto de partida para “Baby”, novo filme de Marcelo Caetano.
Em sua nova configuração de vida, Wellington reencontra amigos pela Praça da República e acaba num dos diversos cinemas pornô que ocupam a região – cinemas estes que ocupam as salas que antes já abrigaram os lançamentos dos tempos áureos do cinema da Boca do Lixo nos anos 70, num desses muitos universos que já habitaram o centro. Nesse jogo de sedução pelos corredores do cinema, o jovem conhece Ronaldo (Ricardo Teodoro), um homem de 42 anos que vive da prostituição e de uma ainda analógica atuação na venda de drogas. Com esse encontro, Wellington passa a atender pelo apelido de Baby e, a partir daí, passa a circular por novos espaços e pessoas. Neste percurso eles vislumbram um universo de possibilidades dentre os meandros dos prédios e pequenas ruas: o pó vendido nas esquinas, o sexo oferecido nas saunas, a metanfetamina misturada ao sexo em apartamentos esfumaçados; bem como as amizades construídas na falta, as novas famílias construídas nos encontros possíveis, a solidão dividida com quem não se tem nenhum laço de sangue.
Tateando tantos cenários e circulando por tantas possíveis narrativas, seria fácil que “Baby” caísse na armadilha de tentar abarcar coisas demais em sua curta duração, mas pelo contrário, Marcelo Caetano faz desse quebra-cabeça urbano o seu alicerce para a construção de um dos retratos mais sinceros e fiéis da atual existência de uma importante parcela dos homens gay que vivem na cidade de São Paulo. E aqui fazemos dois adendos: 1) o filme tateia outras existências como a experiência trans ou lésbica, mas deixa bem claro seu recorte em torno desses personagens masculinos e este é um recorte importante para que o roteiro não se perca em narrativas complexas que poderiam ser tratadas de forma frívola; 2) quando falamos de “uma parcela dos homens gays”, estamos delimitando que há um recorte bem específico que leva em conta questões como classe, raça e até mesmo a idade, tanto que os personagens que transitam pela tela não correspondem a uma norma branca-jovem-de-porte-atlético. Enfim, talvez esse parágrafo seja mais uma digressão que pode se desdobrar em outras discussões mais complexas, mas é importante pontuar essas especificidades para que essas leituras também possam ser feitas e ajudem em uma busca por transgredir nossos olhares sobre o filme.
Com tudo isso, “Baby” funciona como um passeio sem medo pelo centro de São Paulo, nos convidando a descobrir as pessoas e a humanidade que há por trás de todos aqueles prédios, casarões, pensões e hotéis. Para dar vida a esse mundo temos a atuação hipnótica de João Pedro Mariano como o nosso protagonista Baby. Seu personagem subverte qualquer dicotomia de certo/errado, herói/anti-herói, mocinho/vilão, nos fazendo embarcar nessa narrativa mesmo quando o personagem comete os piores erros. Essa construção cheia de humanidade se estende a Ricardo Teodoro e seu Ronaldo, a forma como o ator consegue dosar delicadeza e brutalidade é um assombro. E juntos, João Pedro e Ricardo constroem um encontro encantador de se assistir na tela. Ao lado deles há a presença de Bruna Linzmeyer e Ana Flavia Cavalcanti, esta última em atuação certeira, com a competência de saber brilhar em seus poucos momentos de tela. Vale citar também as presenças de Marcelo Várzea e Luiz Bertazzo em personagens riquíssimos.
Outro ponto que vale ressaltar é a beleza visual do filme: “Baby” tem cores fortes, uma vivacidade que encanta e que contrasta com essa tendência opaca dos filmes atuais, em que deixar tudo cinza e sem brilho funciona como muleta para uma pretensa verossimilhança com o mundo real – tendência essa que se estende desde os filmes de arte até os filmes pop de Hollywood. Com direção de arte de Thales Junqueira e fotografia de Joana Luz e Pedro Sotero, “Baby” consegue transpor São Paulo para a tela com a máxima verdade, com suas nuances entre o neon e a sujeira, entre o abandono arquitetônico e o brilho das pessoas.
O premiado longa-metragem de Marcelo Caetano, que estreou neste início de ano nos cinemas brasileiros, vem de uma longa carreira em festivais, que se iniciou com sua estreia na Semaine de la Critique do Festival de Cinema de Cannes de 2024, de onde o filme saiu com o prêmio de melhor ator revelação para Ricardo Teodoro. Por aqui o filme passou pela Mostra de São Paulo, Festival MixBrasil e Festival do Rio, onde levou os prêmios de melhor direção de arte, para Thales Junqueira, e melhor ator, para João Pedro Mariano, além do prêmio de melhor longa-metragem de ficção, dividido com o também excelente “Malu”, de Pedro Freire. E esses louros são merecidos: “Baby” representa uma maturidade de Marcelo Caetano, mostra um realizador com uma visão interessante e potente, mas mais que isso, alguém que sabe transpor isso para a tela com a riqueza que o cinema nos possibilita. Este é filme para se ver na tela grande, para se entregar sem medo a jornada que o jovem Baby nos convida, aproveite.
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava.