Documentário apresenta a demência do jornalista Maurício Kubrusly a partir de um olhar respeitoso e delicado

texto de Renan Guerra

Maurício Kubrusly se tornou um ícone popular com seu estilo de contar histórias e revelar outras nuances do Brasil na televisão. Seu trabalho no Fantástico nos anos 1990 e 2000 marcou o público e o jornalismo brasileiro. Depois de alguns anos afastado da televisão, era esperado que na comemoração de 50 anos do programa dominical da TV Globo ele aparecesse, porém o que se mostrou foi um compilado de seu trabalho e a informação em off de que o repórter vivia afastado do jornalismo em função de um quadro avançado de demência. A informação surpreendeu e gerou curiosidade –um tanto mórbida, diga-se. Para evitar especulações e narrativas invasivas, Beatriz Goulart, a esposa de Kubrusly, se uniu aos diretores Evelyn Kuriki e Caio Cavechini para contar essa história a partir de uma perspectiva bastante particular. “Kubrusly – Mistério Sempre Há de Pintar por Aí”, disponível no Globoplay – e premiado pela APCA como melhor documentário de 2024 na categoria televisão –, busca contar esta história não pela ótica da deterioração e dos apagamentos, mas sim pela construção e narrativa desse novo universo cotidiano no qual Kubrusly vive.

Kubrusly vive uma experiência em que seu cérebro aos poucos vai se deteriorando e sinapses cotidianas passam não mais a existir. Hoje ele simplesmente não reconhece mais a sua existência anterior à doença e só consegue lembrar diretamente do nome de sua mulher – desconhecendo amigos e familiares próximos. A partir disso, o documentário poderia escolher diferentes perspectivas, como, por exemplo, uma narrativa científica, que explorasse a doença de seu protagonista e todos os meandros médicos de seu diagnóstico, partindo de tudo que sabemos sobre nosso cérebro e explorando o amplo universo de mistérios que ainda nos perseguem. Em outra medida, poderia caminhar pela perspectiva de deterioração e não-existência sócio intelectual de seu personagem, dialogando com a narrativa de Antonio Cicero, por exemplo, que, perante o avanço de seu Alzheimer, optou pelo suicídio assistido, ou mesmo a narrativa ficcional de “O Quarto ao Lado”, de Pedro Almodóvar, que versa sobre a escolha da morte perante a fragilidade do corpo envelhecido.Os diretores Evelyn Kuriki e Caio Cavechini, porém, escolheram um outro caminho: tatear a possibilidade de existência de Maurício Kubrusly e a criação de outro universo cotidiano e sensorial ao lado de sua parceira Beatriz Goulart.

Beatriz Goulart e Maurício Kubrusly em cena do documentário

“Kubrusly – Mistério Sempre Há de Pintar por Aí” constrói sua narrativa ao acompanhar o cotidiano do casal, com a tentativa máxima de não interferir na rotina e na logística do universo próprio de Kubrusly – mesmo que, em alguns momentos, ele próprio quebre essa logística. Para amarrar isso há uma reconstrução da história profissional dele, passando de seu trabalho como jornalista na mídia impressa, depois seu percurso na rádio e, por fim, sua presença popular na TV. Seu percurso pré-televisão marca um jornalista cultural fundamental para a formatação da cultura pop à brasileira e para uma crítica cultural séria e complexa, sem deixar de lado o bom humor tão típico dos trópicos. Seu trabalho é fundamental para refletir a MPB dos anos 1970, da contracultura aos medalhōes que eram construídos à época, dos rebeldes roqueiros às elegantes intérpretes do cancioneiro nacional. Nos anos 1980, seu trabalho no impresso e na rádio foi crucial, por exemplo, para a formatação de uma nova estrutura musical alternativa. Com a ousadia de apostar no novo, Kubrusly foi um dos principais fomentadores e apoiadores da vanguarda paulista, colocando para circular nomes como Itamar Assumpção, Premê e Grupo Rumo – nomes importantes na narrativa do filme que estamos analisando aqui, vale guardá-los na memória.

Jornalista cultural prestigiado, Kubrusly se tornou figura querida do povo brasileiro ao levar para as telas da TV os personagens mais absurdos, inesperados e curiosos dos rincōes do país. Nos anos 1990, Kubrusly – junto com Regina Casé – se transformou num dos reis do fait divers dos nossos domingos, apresentando no Fantástico as histórias mais inesperadas e encantadoras de nosso interior. Kubrusly se tornou sucesso por conseguir enxergar humanidade e dignidade nesses personagens; suas matérias eram crônicas do pitoresco, porém conseguiam captar o mais interessante e rico das impossibilidades de nosso país. Por causa disso, o jornalista virou referência para públicos diversos, conseguindo fazer coberturas ricas e interessantes dos personagens mais inusitados do amplo território brasileiro do mesmo modo em que conseguia transformar a cobertura do Carnaval na Sapucaí – em transmissão ao vivo – em um multiverso de histórias, curiosidades e possibilidades.

Gilberto Gil e Maurício Kubrusly em cena do documentário

Tudo isso é reverenciado no documentário de Evelyn Kuriki e Caio Cavechini, bem como é celebrado pelo próprio Kubrusly, que, em sua nova existência, está sempre a redescobrir o histórico de um outro Kubrusly que já não existe. Nessas construções “kubruslyanas”, a coisa mais rica e impressionante de “Kubrusly – Mistério Sempre Há de Pintar por Aí” é a relação de seu protagonista com a música. Um dos nossos mais importantes jornalistas musicais do século XX, Kubrusly ainda hoje se emociona e se movimenta a partir da música. Em seu novo universo ele vive de ouvir playlists em seu antigo iPod e de dar play em discos já conhecidos que se tornam agora novidades aos seus ouvidos. A partir de novas experiências, Kubrusly redescobre canções que eram suas velhas conhecidas e não hesita em fazer análises, afirmando de dedo em riste a beleza e a força de certas canções. O amante da música e o crítico musical ainda resistem em algum espaço misterioso de seu cérebro e, em alguns dos momentos mais absurdos e emocionantes do filme, ele, apesar de toda a destruição de sua memória, começa a cantar versos e melodias de determinadas canções. São cenas que nos levam às lágrimas. Beatriz sempre demonstra seu espanto e emoção nesses momentos e isso se transmite ao espectador: vê-lo cantar “São Paulo, São Paulo”, do Premê, ao circular pelas ruas do centro de SP; ver sua emoção ao som de Itamar Assumpção; compreender seu deslumbre pelos versos de Luiz Tatit; e, claro, assistir sua repetida emoção ao ouvir “Esotérico”, a faixa de Gilberto Gil que deu título ao filme. Tudo isso é de arrepiar, de fazer chorar, de deslumbrar qualquer amante de música.

“Kubrusly – Mistério Sempre Há de Pintar por Aí” é uma celebração à história do jornalista Kubrusly, é também uma ode aos apaixonados pela canção, um deslumbramento pela música, mas, acima de tudo, é um filme que reverbera a humanidade, que nos reconecta com as possibilidades de diferentes existências. O amor de Beatriz e Kubrusly nos lembra que a vida é bem mais complexa do que as maquinações comezinhas. Assistir ao casal desembalar seus discos, ver Beatriz reconhecer seu marido a partir dos textos e anotaçōes que ele deixou, vê-los dançar juntos ou ainda observar a simplicidade dos mergulhos na piscina ou ao mar, tudo isso nos reconecta com possibilidades de existências bem mais amplas do que as repetições cotidianas nos deixam perceber. A realidade é que este documentário poderia se transformar em exploração desnecessária da intimidade de um grande profissional, porém, felizmente, se torna quase um poema. Um poema sobre o envelhecimento, sobre o companheirismo, a paixão, o desafio da existência no hoje, uma ode aqueles que enfrentam à vida em seu máximo. Esse final do texto pode soar exagerado, quase over, mas não temos medo de apostar que após assistir este documentário você também sairá modificado, com a cabeça cheia de perguntas, medos e emoções. É isso, assista “Kubrusly – Mistério Sempre Há de Pintar por Aí” desarmado e se deixe emocionar.

– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava.

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