texto de Renan Guerra
Há uma cena excelente em “As Virgens Suicidas” (filme de Sofia Coppolla de 1999 que é uma adaptação do livro homônimo de Jeffrey Eugenides) em que a personagem Cecilia, a primeira suicida, ouve de um médico a frase “O que você está fazendo aqui, querida? Você nem tem idade para saber o quão ruim a vida fica”, ao que ela responde: “Claro, doutor, você nunca foi uma menina de 13 anos”. Buscando outra referência, há uma cena no programa “Saia Justa”, do GNT, em sua formação clássica, quando Fernanda Young tenta ler a tradução de “What It Feels Like For A Girl”, da Madonna, “Como é ser uma garota”, em tradução da própria Fernanda; ela lê metade da letra e a voz embarga, no que Rita Lee finaliza a leitura para ela – a cena foi usada no documentário “Fernanda Young – Foge-me ao Controle”, de Susanna Lira. Crescer sendo mulher em nossa sociedade nunca foi tarefa simples, tanto que é tema de ampla literatura, porém há um formato que se impõe em muitas dessas narrativas, com sua sinceridade direta, tanto que até é visto como um formato mais feminino: o diário – há diferentes estudos que comprovam a perspectiva do diário como documento memorialista e de construção de um universo de narrativas e criações femininas nos séculos XIX e XX. E é nesse formato sincero e íntimo que se constrói “Tudo o que posso te contar” (Editora Record, 2024), livro de estreia de Cecilia Madonna Young.
E vamos já esclarecer: o nome Cecília é apenas uma curiosa coincidência com a personagem de “As Virgens Suicidas” citada no primeiro parágrafo; porém o Madonna realmente vem de uma homenagem à Madonna, a rainha do pop. E isso tem a ver com outra referência presente no primeiro parágrafo: Cecília Madonna Young é filha de Fernanda Young, uma fã confessa de Madonna. Escritora e roteirista fundamental dos anos 2000, Young teve uma parceria de vida e trabalho com Alexandre Machado, pai de Cecília. Fernanda nos deixou em 2019. O livro de Cecilia se constrói em fatos posteriores à morte da mãe, compreendendo especialmente um recorte que vai de 2020 até 2021. “Tudo o que posso te contar” é realmente composto dos diários pessoais de Cecília que foram revisitados durante 2022 e editados de forma a construir uma narrativa mais coesa e que expõe apenas alguns lados da persona da jovem escritora e jornalista. Formado por textos, colagens e páginas escaneadas de seu diário, o livro é um diálogo franco com o leitor. Cecilia deixa de lado temas como romances e sexualidade, e pouco explora narrativas que envolvem terceiros, seu foco essencial é em sua própria existência e em todos os seus demônios internos.
Lidando com problemas de saúde mental, como depressão e anorexia nervosa, Cecilia cria uma narrativa franca sobre seus medos, suas angústias e suas dificuldades diárias. E ela fala de tudo isso sem tabus, com uma naturalidade de quem sabe as complexidades com que lida; por isso mesmo ela não tem medo de explorar temas como as possibilidades de tendências suicidas, o tratamento psiquiátrico com medicação ou a exposição de suas próprias atitudes condenáveis. Em alguma medida, essa perspectiva bastante sincera de Cecília pode ser lida como exagero juvenil ou um drama da “pobre menina rica”, mas o fato é que as páginas de “Tudo o que posso te contar” reverberam ipsis litteris a cabeça de diferentes pessoas que já lidaram ou ainda lidam com problemas de saúde mental, seja depressão, ansiedade, fobia social ou outros. Seu texto consegue colocar em palavras as dores e os absurdos de lidar com uma mente que não corresponde às normas sociais e que não obedece às expectativas de um mundo em que a produtividade e a felicidade deveriam ser a “norma comum”.
Para balançar esse peso das dúvidas e reclamações, Cecília recheia as páginas de seus diários com suas paixões culturais. Música é seu principal alimento, por isso as citações são múltiplas, de Fiona Apple à 5 Seconds Of Summer, de Billy Joel à Lorde. São parágrafos e parágrafos dedicados a suas paixões, como Stevie Nicks e Taylor Swift. De uma geração em que não é mais cool listar guilty pleasures, Cecília mistura referências audiovisuais sem nenhum pedantismo, então “Glee” e o multiverso de Ryan Murphy coabitam suas linhas ao lado de Ginger Rogers e sua paixão pelos clássicos da era de ouro de Hollywood, David Lynch aparece referenciado do mesmo modo que filmes pipoca de terror ou musical. Tudo isso cria um universo de referências que ajudam a compreender a cabeça a mil de Cecilia – incluindo aí suas referências literárias, que também passeiam por diferentes mundos, de biografias musicais a seminal Sylvia Plath (é basilar para a maioria dos leitores-tristes-classe-média passarem por seu momento “A redoma de vidro”, isso forma caráter).
Nisso tudo, Cecilia Madonna Young constrói um panorama amplo de sua personalidade e de seu universo particular, em uma jornada que pode ser repetitiva para alguns, mas completamente identificável para outros. Com suas constantes repetições sobre suas inseguranças e sobre a exaustão que é viver em sua própria cabeça, é natural que em algumas páginas a gente queira entrar dentro do livro e dizer “calma, Cecilia, essa fase é realmente difícil, mas depois até alivia um pouco”. Em outra medida, também é fácil lembrar de uma das cenas de “Beleza Americana” (Sam Mendes, 1999), quando o protagonista reflete sobre sua filha adolescente e diz: “Ela é irritada, insegura, confusa. Eu gostaria de poder dizer pra ela que tudo vai passar, mas não quero mentir pra ela”. É complicado ler as páginas de Cecilia quando somos adultos – em alguma medida – ainda quebrados, pois queremos ajudar e acalmar os ânimos da autora, mas ainda seguimos nos identificando até demais com seus medos, suas angústias e, especialmente, seu cansaço.
No final das contas, Cecilia nos entrega um relato sincero, fazendo de seu livro de estreia um cartão de visitas para seu universo, uma apresentação de uma jovem jornalista que é curiosa e criativa. Finalista da categoria de autor estreante do Jabuti, “Tudo o que posso te contar” é uma leitura que sabe balançar tensões e ironias, e acaba encantando por sua sinceridade.
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava. A foto de Cecília é de Gustavo Almeida / Divulgação