texto de Renan Guerra
Mahin (Lili Farhadpour) vive sozinha em Teerã. Aos 70 anos, ela segue uma rotina simples, cuida de seu jardim e dorme pelas manhãs, pois tem dificuldade de dormir à noite. Seu marido já morreu e seus filhos migraram do Irã. Num dos raros encontros com suas amigas, entre discussões sobre envelhecimento e doenças, elas debatem a solidão feminina na terceira idade e conversam sobre a possibilidade de relacionamentos nessa fase da vida. Esse encontro mexe com Mahin e a impulsiona para se abrir a mudanças em sua rotina. Nessas andanças, ela acaba conhecendo Faramarz (Esmaeel Mehrabi) e aí não falaremos mais, pois já contamos até bastante da narrativa de “Meu Bolo Favorito” (“Keyke mahboobe man”, 2024). De qualquer modo, essas informações básicas sobre o roteiro não importam tanto, pois o filme de Maryam Moghadam e Behtash Sanaeeha é essencialmente construído em suas minúcias. Com um roteiro que acompanha poucos dias da vida de Mahin, este filme nos convida a explorar o corriqueiro.
“Meu Bolo Favorito” nos apresenta sua protagonista Mahin a partir de detalhes simples e, aos poucos, vai nos inserindo em seu universo de solidão, desejos e sonhos para envolver o espectador em uma jornada que parece singela, mas que se expande de forma bastante surpreendente. Há, de algum modo, quase que três atos no filme: o ato um, que nos apresenta o cotidiano da protagonista, sua rotina e sua solidão; um ato dois, o mais terno de todos, quase como um “Antes do Amanhecer” à iraniana da terceira idade – essa referência é usada aqui mais pela formatação dessa sequência, bastante calcada nos diálogos e seguindo um tempo mais próximo do real. E por fim temos um terceiro ato sobre o qual não falaremos nada, pois o filme nos propõe essas curvas – para referencial, o filme de Maryam Moghadam e Behtash Sanaeeha lembra os filmes iniciais de Anna Muylaert (lembram?), quando em algum momento poderíamos fazer uma curva e o filme mudava de gênero, nos pegando de surpresa.
Neste percurso, “Meu bolo favorito” caminha por temas que são basicamente considerados crimes no Irã, mas é curioso que, por mais modernos que sejamos aqui pelas bandas do Ocidente, estes também são temas ainda tabu por aqui: o envelhecimento do corpo, a sexualidade na terceira idade, o desejo e a paixão depois dos 60, a relação clara com a possibilidade da morte, todos temas que o cinema ocidental ainda está começando a investigar. Digressões à parte, o filme de Maryam Moghadam e Behtash Sanaeeha observa esses temas com um olhar que não mistifica esses personagens, pelo contrário, ele busca o mais banal, o cotidiano, tanto filmando cenas que poderiam ser lidas como frívolas, quanto registrando os desejos mais profundos desses personagens: seja o desejo de companhia para atos rotineiros ou mesmo o medo de morrer sozinho, sem alguém que ache seu cadáver. Há uma sensibilidade para construir esses personagens com complexidade, com uma profundidade que nos permite imaginar muitas memórias e histórias que estão para além da tela; isso é uma riqueza de quem sabe desenhar seus personagens de forma sábia.
Para quem acompanha o cinema iraniano, “Meu Bolo Favorito” acaba surpreendendo, pois caminha por universos que não podem ser abordados pelos diretores do país, já que o cinema do país é conhecido por obedecer uma série de restritivas regras do governo, que proíbe a abordagem de uma diversos temas, bem como determina algumas limitações de produção, como por exemplo a proibição de mulheres exibirem seus cabelos frente às câmeras. Os dois diretores de “Meu Bolo Favorito” assumiram esse risco e optaram por filmar com toda a liberdade que queriam. Isso fez com que eles sofressem diferentes sanções e fossem proibidos de deixar o Irã, o que impossibilitou a presença deles no Festival de Berlim, por exemplo. A dupla enviou uma carta aos jornalistas, que foi lida pelos atores protagonistas do filme, onde deixavam claro: “Decidimos cruzar todas as linhas vermelhas e restrições, e aceitar as consequências da nossa escolha de pintar uma imagem real das mulheres iranianas. […] Durante anos, os cineastas iranianos têm feito filmes sob regras restritivas, obedecendo a linhas vermelhas que, quando ultrapassadas, podem levar a anos de suspensão, proibições e processos judiciais complicados. É uma experiência dolorosa, que já vivemos muitas vezes. […] Estamos tristes e cansados, mas não estamos sozinhos”.
Como resultado dessa ousadia de Maryam Moghadam e Behtash Sanaeeha temos essa pequena joia que é “Meu Bolo Favorito”, um filme que nos traz um pequeno vislumbre de outras existências iranianas, nos aproximando de novas narrativas femininas no país. Além da atitude dos diretores, devemos celebrar a coragem de Lili Farhadpour e Esmaeel Mehrabi, atores que embarcam nessa jornada do filme e que nos entregam performances sinceras e delicadas. A construção desses personagens nos aproxima da narrativa e nos encanta de uma forma sedutora em um filme que consegue nos levar por uma montanha-russa de sentimentos: do riso ao medo, da tensão ao deslumbramento. “Meu Bolo Favorito” nos lembra que, apesar de todos os cerceamentos que nos imponham, a beleza da vida ainda consegue se mostrar a partir das mais pequenas brechas.
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava.