textos de Leonardo Tissot
É verdade que mostrar o universo da música nas histórias em quadrinhos nunca foi tarefa das mais fáceis. Mas isso não impediu que uma turma de talento aqui do Brasil tenha se esforçado pra mudar essa realidade, como comprovam dois lançamentos e um relançamento de HQs de 2024.
“Alvorada dos Corações Macabros”, de Diego Gerlach (Pé de Cabra)
HQ influenciada pela música — aqui, o rock alternativo dos anos 1990 — “Alvorada dos Corações Macabros”, de Diego Gerlach, é uma viagem insólita povoada por personagens de Beavis and Butt-Head e o som que fez a cabeça dos jovens durante o auge da MTV. Mas o quadrinho não é uma “homenagem” ao grunge de Seattle. Pelo contrário: a HQ reflete o sentimento de desilusão característico do período, sem nostalgia alguma. De quebra, mergulha de cabeça em teorias da conspiração, escancara o negacionismo trumpista que envenena a sociedade e ainda joga alienígenas no caldeirão de referências que compõem a história de 116 páginas. Uma das partes mais divertidas é quando o personagem principal — uma espécie de versão de Stewart Stevenson, de Beavis and Butt-Head — se depara com a possibilidade de Dave Grohl ser o responsável pela morte dos colegas de banda Kurt Cobain e Taylor Hawkins. Assim como um solo de guitarra de Cobain, o traço sujo de Gerlach exprime o mal-estar do teen spirit da época — que se torna ainda mais amargo na vida adulta (ainda que a HQ tenha momentos hilários).
“Um Lugar do Caralho”, de Thiago Krening (Editora Hipotética)
Na época de seu lançamento original, em 2022, Thiago Krening conversou com o Scream & Yell. Essa primeira edição esgotou e, por isso, foi relançada em 2024 com uma nova capa pela Editora Hipotética — uma das mais atingidas pelas enchentes na capital gaúcha em maio de 2024. A história mostra o dia a dia de um grupo de jovens amigos — os estudantes universitários Carlo, Mica, Daniel e Lia — que frequentam a Boate do DCE da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). A música também é um dos personagens principais da narrativa — com intervenções gráficas que praticamente colocam o leitor dentro da Boate do DCE. A canção que dá título ao livro, de Júpiter Maçã, é um dos hits que integram a trilha sonora da obra — além de outros hinos do rock nacional e estrangeiro. As bandas gaúchas, naturalmente, têm preferência. Disponível na loja online da editora!
“Samba”, Vários Autores (Brasa)
Lançamento da Brasa — premiada como editora do ano no HQ Mix 2024 —, “Samba” integra a coleção Música Popular em Quadrinhos (MPQ). O projeto, que estreou com o volume “Grandes Sucessos”, foi desenvolvido em parceria com o Instituto Guimarães Rosa (IGR) — órgão do Ministério das Relações Exteriores — e com a Bienal de Quadrinhos de Curitiba. “Samba” traz oito histórias escritas e ilustradas por diferentes artistas, todas inspiradas por clássicos do estilo mais brasileiro de todos, como “Homenagem ao Malandro”, de Chico Buarque, “Candeeiro de Vovó”, de Dona Ivone Lara e, é claro, “Trem das Onze”, de Adoniran Barbosa. Esta última, lançada originalmente em 1964 pelos Demônios da Garoa, virou uma história dos tempos modernos. A letra “minha mãe não dorme enquanto eu não chegar” ganha vida em cenas nas quais uma das personagens recebe mensagens insistentes via celular, pedindo que ela volte para casa — uma criativa adaptação da canção feita por Ilustralu. Outros destaques são a elegância das aquarelas de Odyr Bernardi em um história inspirada por “O Mestre-Sala dos Mares” (Aldir Blanc e João Bosco), a sagacidade de Evandro Alves ao reimaginar “Coração Leviano” (Paulinho da Viola) como a paixão de uma baleia por uma embarcação, e a ternura de Raphaela Corsi ao retratar um amor carnavalesco a partir dos versos de “Alvorada”, composição de Cartola, Carlos Cachaça e Hermínio Bello de Carvalho. A edição caprichada da Brasa, com uma qualidade gráfica digna de um Joãosinho Trinta, deixa esse samba ainda mais afinado.
– Leonardo Tissot (www.leonardotissot.com) é jornalista e produtor de conteúdo. Leia outros textos de Leonardo!.