texto de Gabriel Pinheiro
“Um homem vê seu reflexo e não tem certeza se reconhece a si mesmo. Quem é você, ele pergunta à figura no espelho. Eu ao menos te conheço?”. Salman Rushdie descreve seu primeiro encontro com o espelho, com o próprio reflexo, após o atentado à faca sofrido em 2022. Até aquele momento de reencontro com a própria imagem, frente ao seu duplo espelhado, o escritor passou por um longo tempo de internação, recuperação e procedimentos médicos. “Em algum momento, você vai se transformar em mim ou é isso que me resta agora, esse semiestranho de cabelos emaranhados e com um olho só”. Quem é este homem que permanece após um encontro tão intimamente próximo com a morte? Essa é uma das muitas perguntas que o próprio escritor se faz em “Faca: Reflexões sobre um atentado”, volume que caminha entre o gesto autobiográfico e o ensaístico como forma de enfrentar um acontecimento avassalador. Com tradução de Cássio Arantes Leite e José Rubens Siqueira, o livro foi lançado pela Companhia das Letras.
Em 1989, o aiatolá Khomeini, principal líder da Revolução Islâmica no Irã, emitiu uma fatwa, um pronunciamento ordenando a morte de Salman Rushdie e da equipe responsável pela publicação de seu romance “Os versos satânicos”, lançado originalmente em setembro de 1988. Inspirado na vida do profeta Maomé, o livro foi considerado pela liderança religiosa como blasfemo. Foram pouco mais de 30 anos em que essa ameaça pairou sobre a cabeça e a vida do escritor indiano. Até 2022. Durante uma palestra no pequeno condado de Chautauqua, em Nova York, um homem avançou sobre o autor, em meio ao público presente, portando uma faca, num ataque íntimo e brutal. Dada à violência do ato e das inúmeras perfurações sofridas, Salman Rushdie sobreviveu por pouco. Sobreviveu para contar – ou, melhor, escrever – essa história.
Em “Faca: Reflexões sobre um atentado”, Salman Rushdie narra o antes, o durante e o depois. Desde os momentos anteriores ao ataque – quando foi convidado para falar sobre a criação de espaços seguros nos Estados Unidos para escritores de outros países – até o momento crucial e o que veio a seguir. A urgência do atendimento no hospital, a identificação de todas as feridas, a perda da visão de um dos olhos, o longo processo de recuperação, o transtorno pós-traumático. “Ele simplesmente esfaqueava loucamente, esfaqueava e cortava, a faca me atingindo como se tivesse vida própria, e eu caindo para trás, para longe dele, enquanto me atacava; na queda, bati com força o ombro no chão.”
Salman Rushdie, num texto profundamente literário e de escrita elegantemente reflexiva, coloca seu trauma íntimo em diálogo com traumas universais e com a própria literatura. Rushdie faz uma defesa apaixonada – mas, nem por isso, acrítica – da literatura e da arte. O fazer artístico como espaço de liberdade. “Se você tem medo das consequências do que diz, então você não é livre”. A escrita aqui é uma forma de lidar com o trauma, de digeri-lo. Uma forma de retomada de um protagonismo sequestrado, na recusa do papel de vítima. “Compreendi que precisava escrever o livro que você está lendo agora antes de poder passar para outra coisa. Escrever seria minha maneira de admitir o que acontecera, de assumir o controle, torná-lo meu, recusando-me a ser uma mera vítima. Eu responderia à violência com a arte”.
A literatura aqui possibilita o encontro entre Salman e A – A de Asno, A de agressor, A de assassino, ele nos diz, não nomeando o seu algoz. O jovem agressor norte-americano e o escritor idoso travam um longo e contundente diálogo imaginário, onde Salman busca esmiuçar as consequências do discurso de ódio e os fatos que levaram A até este ato indizível, na tentativa de assassinato, atendendo a uma fatwa proclamada mais de três décadas antes – quando ele não era nem nascido. “Mas você precisava culpar alguém, queria muito culpar alguém, e toda essa culpa difusa o inundou e transbordou, e então alguma coisa, um tweet, um vídeo, vai saber, direcionou toda essa vida mergulhada na culpa para o meu lado, e ela veio pairar sobre minha cabeça, e você começou a planejar.”
“Faca: Reflexões sobre um atentado” é um olhar para o medo, o trauma, a violência e o ódio: marcas tão indeléveis do nosso tempo. Mas não só. É um olhar para a literatura, para a liberdade, para o amor – pela arte e pelas pessoas –, para o milagre e para a esperança. Esse é, sem dúvidas, um dos lançamentos mais importantes de 2024, assombroso e emocionante.
– Gabriel Pinheiro é jornalista. Escreve sobre suas leituras também no Instagram: @tgpgabriel.