Música: “PIQUE”, de Dora Morelenbaum, é um trabalho luxuoso, complexo e criativo sem deixar de ser pop

texto de Renan Guerra

De tempos em tempos temos as palavras da moda, tendência que se amplificou e se tornou mais veloz nas redes sociais. Entre as muitas dos últimos anos, um estrangeirismo que se tornou usual no português foi “nepobaby”. Em tradução literal, os “filhos do nepotismo”, isto é, jovens que se favoreceram pelo status e poder social e financeiro de seus pais. Desde que o mundo é mundo que filhos de ricos & famosos se aproveitaram das benesses e facilidades promovidas pelos seus pais, e no mundo das artes isso não é diferente. E rapidamente conseguimos lembrar de uma série de nomes de atores, cantores e outros artistas nepobabys que não nos ofereceram nada, nem talento, nem carisma, nada de relevante, mas ainda assim seguem ocupando espaços importantes na TV, no cinema e nos palcos, ganhando tanta grana quanto seus pais – e às vezes até mais que eles. Por outro lado, podemos pensar em nomes incríveis que nasceram também em berços artísticos, de Luis Fernando Verissimo a Liza Minelli, de Fernanda Torres a Gloria Pires. Por aqui somos do time que não acredita que talento artístico é coisa inata, que se transfere pelos genes, pelo contrário, acreditamos que é ofício de estudo, pesquisa e importante entrega. Por isso mesmo respeitamos aqueles nepobabys que se aproveitam de suas vantagens para explorar tudo de bom que esse universo pode ter. Se você tem fácil acesso a grandes nomes e a importantes espaços, por que você realmente não usa isso de forma sábia? É, muita gente não usa… mas enfim, vamos falar de quem usa isso muito bem.

Dora Morelenbaum é filha do violoncelista e maestro Jaques Morelenbaum com a cantora Paula Morelenbaum. Para quem não é do mundinho MPB, esses nomes podem até ser desconhecidos, pois o casal Morelenbaum nunca chegou a experimentar o sucesso popular no Brasil. De todo modo, os dois artistas são dos nomes mais respeitados da MPB nos últimos 30 anos, com carreira celebrada por artistas brasileiros e do exterior, com importantes colaborações com nomes como Ryuichi Sakamoto, João Donato, Maria Bethânia, entre outros – Bethânia, aliás, brinca em um de seus discos ao vivo falando “Jaques Morelenbaum, o cello mais desejado do Brasil!”. Jaques e Paula são dois artistas de talentos absurdos, que viajaram o mundo tocando ao lado de alguns dos mais importantes instrumentistas da atualidade – tanto da música brasileira quanto internacional. Dora aproveitou todos esses acessos para mergulhar em uma série de referências e desenvolver desde ali uma rede de artistas talentosíssimos em seu entorno.

Em 2020 surgiram os primeiros lançamentos musicais de Dora, em projeto que já vinha sendo gestado antes ainda da pandemia de covid-19. Em 2021, ela lançou “Vento de Beirada”, seu primeiro EP, um trabalho breve, mas que já apontava as qualidades de Dora como cantora, compositora e produtora. Ali já ficava claro o talento de Dora para encapsular referências clássicas e ainda assim apontar o novo, dialogando com o presente, sem necessariamente se filiar à nova moda do momento. Ainda em 2021, Dora se junta à trupe que formou o Bala Desejo, espécie de supergrupo de talentos em ascensão. No ano seguinte o grupo lança o disco “SIM SIM SIM”, via Coala Records, e, de forma divisiva, se torna uma espécie de sucesso indie, presente em inúmeros festivais e conseguindo uma interessante circulação por diferentes palcos. Apesar dos inúmeros detratores, Bala Desejo não era um trabalho artístico ruim, pelo contrário, tem uma qualidade interessantíssima, porém ainda soa como eterno pastiche de coisas que já existiram. A comparação com Doces Bárbaros, por exemplo, é direta e sempre acontece, mas acaba sendo até injusta com os artistas da atualidade, pois ser comparado com o quarteto Maria Bethânia, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Gal Costa é uma batalha que já nasce perdida. E já que entramos nessa correlação, é interessante pensar que no supergrupo baiano dos anos 1970 havia uma equivalência: os quatro artistas têm um talento que se equipara, todos têm identidades próprias bem definidas e se agrupam numa intersecção entre seus talentos e num ajuste entre seus egos. Já na incursão dos jovens do Bala Desejo fica clara uma disparidade, pois cada um traz sua bagagem artística e cultural e, sem desmerecer o talento de nenhum deles – pois seus talentos individuais são inegáveis –, podemos ser sinceros e falar abertamente que Dora está em outro nível, não podemos dizer que melhor ou maior que o de seus companheiros de banda, mas apenas podemos afirmar que é um nível diferente.

Este talento de Dora Morelenbaum agora se afirma e se apresenta de forma completa em seu disco de estreia “PIQUE” (2024), trabalho que demorou a sair, mas que foi enfim lançado em outubro deste ano em parceria com os selos Coala Records (Brasil) e Mr Bongo (Reino Unido). O disco tem como espinha dorsal a canção, em um diálogo claro com a história desse formato dentro da MPB. Aqui o mais interessante é que, diferente de muitas e muitos que bebem nos anos 1970, Dora parece trafegar por outros caminhos, mesclando bossa nova com a novíssima MPB dos anos 2010, conectando a MPB anos 1990 à la Adriana Calcanhotto e Marisa Monte com a classe das cantoras mais lado B dos anos 1980. Aliás, essas cantoras lado B dos anos 1980 parecem a melhor conexão aqui; talvez elas nem sejam uma referência para Dora, mas o fato é que a sua liberdade e sua naturalidade em bagunçar gêneros sem crise, acabam remetendo àquelas cantoras que tiveram o orçamento e a liberdade de um momento de sucesso das gravadoras para poder investir em cancioneiros diversos e ricos, vide os discos de Olivia Byington, por exemplo – aliás, se quisermos estender a corda, podemos até ir para os discos de Ná Ozzetti na virada anos 80/90.

Fato é que Dora soube usar seus acessos para construir um trabalho luxuoso, que respeita e celebra o trabalho de cada artista que compõe esse processo. Todo seu entorno é uma celebração da história recente da MPB, indo de nomes que estão aí fazendo história há uns 30, 40 anos até outros que estão construindo novidades e possibilidades nos últimos cinco, seis anos. Por exemplo, seu diálogo com os compositores de sua geração é extremamente rico, até porque, primeiramente, Dora é uma compositora excelente. Ela consegue uma das coisas mais difíceis da composição – ou da poesia como um todo –, que é se aventurar em temas que são banais/cotidianos e que poderiam cair no limbo da obviedade e dos chavões ou que poderiam se estender pelo campo do rebuscamento/empolamento vazio, mas que em seus versos ganham o charme da simplicidade bem empregada – um luxo de grandes compositores da música popular. Dora consegue passear por cenas comuns e transformá-las em poesia interessante e pop, com profundidade, criatividade e sem cair no pretensioso. E, para além disso, ela ainda sabe se abrir para os versos e os universos de outros compositores, mostrando uma potencialidade de intérprete que remete às grandes cantoras da MPB – ser intérprete é outro nível, ok, não é meramente fazer covers, é saber dar vida e seus próprios tons às canções.

“Venha Comigo”, por exemplo, é assinada por Sophia Chablau, nome criativo e vibrante da nova cena paulista, frontwoman da banda Sophia Chablau e Uma Enorme Perda de Tempo (e também da Besouro Mulher). Com suas bandas, Sophia muitas vezes carrega as canções de humor, ironia e até um certo deboche, porém quando interpretada por Dora vemos se desabrochar uma outra nuance: seus versos na voz de Dora nos levam por um caminho de romance, de sedução, um charme completamente distinto das interpretações originais de Sophia, é como se a interpretação de Dora nos apresentasse uma nova compositora, um outro universo de Sophia – e isso é muito rico se pensarmos na história da música brasileira, com a quantidade de cantores-compositores que temos e que quase sempre acabavam compondo canções que eram essencialmente pensadas para outras intérpretes e que não eram imaginadas em suas vozes. Para além de Sophia, as trocas de Dora com Zé Ibarra e Tom Veloso também apresentam essas nuances entre a Dora cantora-compositora-intérprete. Sua interpretação de “A Melhor Saída”, assinada por Tom, é uma delícia, desvelando em seu canto um Tom Veloso bem mais acessível e leve que suas intrincadas composições iniciais pareciam apresentar. De todo modo, o que se destaca é a parceria entre Dora e Tom: juntos eles assinam 5 das 11 canções do disco, em um encontro que poderia ser lido como o “duo de nepobabys” (Tom é filho de Caetano Veloso e Paula Lavigne), mas que aqui trataremos como uma descoberta valiosa, pois em conjunto os dois artistas entregam canções de preciosa delicadeza.

Para além desses encontros poéticos, é fundamental citar a produção assinada por Ana Frango Elétrico, em parceria com Dora. Ana é nome constante na música alternativa brasileira dos últimos anos e isso tem um porquê: é artista de criatividade intensa, que sabe casar as referências do passado com as explorações do novo, originalidade que pode ser observada em seus trabalhos autorais, em suas parcerias musicais e em sua atuação como produtora. Ao lado de Dora, é muito bonito observar como ela traz o seu olhar e suas perspectivas, mas ainda assim celebra e eleva a identidade de Dora. Há aqui e ali os detalhes de Ana em “PIQUE”, mas o resultado final é 100% um disco que reverbera a identidade autoral de Dora Morelenbaum. E nisso retornamos a uma afirmação lá do início, a de que Dora sabe muito bem usar seus privilégios de nepobaby. Além de mergulhar de cabeça em todo o conhecimento que esse universo lhe proporcionou, a artista sabe bem demais como trocar com figuras centrais e referenciais desse universo. E aqui estamos falando de um refinamento muito especial, pois na prática ela poderia caçar um feat. que trouxesse buzz ao disco, poderia conseguir alguma canção de algum medalhão da MPB ou poderia pedir o aval/a chancela de algum desses grandões, pois ela tem acesso a todos eles, mas não, ela vai por um caminho interessantíssimo, trazendo alguns dos maiores instrumentistas desse país para criar uma cama luxuosa para o seu canto. Tanto que ao navegarmos pelos créditos teremos assinaturas como Sérgio Machado na bateria (colaborador do Metá Metá e Maria Beraldo) e Alberto Continentino no baixo (colaborador de Adriana Calcanhoto, Ed Motta e Milton), a poderosa Josyara no violão, the one and only Marcelo Costa (experiente baterista e percussionista, um dos queridinhos da banda de Bethânia) fazendo percussão e até Paula Morelenbaum creditada por seu assovio em “Caco”.

Enfim, dito tudo isso, você leitor pode até pensar que exageramos na dose, que Dora pode ser amor passageiro de um verão, porém num Brasil de cantoras, em que as novatas sempre soam como pastiche de alguém – vide as muitas cópias de Gal, Marisa Monte e até mesmo Céu –, é de se celebrar uma cantora, compositora e intérprete que cria seu próprio rumo. Dora Morelenbaum sabe dialogar com seus pares na mesma medida em que consegue olhar para o passado com sabedoria – sem reverências subservientes. E por isso tudo, seu disco “PIQUE” se revela audição envolvente, que consegue ser complexo e criativo sem jamais deixar de ser pop, cantarolável e com as características que o levariam a ser um hit das FMs nos tempos em que as rádios ainda eram ponto de referência. Torcemos para que algum fato interessante faça de Dora uma paixão nacional, mas também já seremos felizes se ela se tornar musa indie, só queremos mesmo é que ela seja ouvida por quem está aberto para seu universo de encontros, desencontros, paixões e solidões. Por isso, ouça o disco de peito aberto (só dar play abaixo), e tente vê-la ao vivo deixando seu lado mais romântico agir.

– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava

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