texto de Renan Guerra
Nos últimos 40 anos, raríssimos artistas tiveram a coragem – e o privilégio – de se manterem constantes em sua arte, fieis à sua própria ética e tão extremamente dedicados ao seu ofício quanto Diamanda Galás, uma das artistas mais ousadas e inventivas do nosso tempo, dona de uma das obras mais extremas e viscerais dos últimos 40 anos – sim, visceral se tornou termo chavão na crítica de arte nos anos 2000 e foi usado de forma exagerada para muitas coisas, mas no caso de Diamanda é difícil encontrar outra palavra que defina tão bem. Nesse sentido, vale se apropriar da fala de ANOHNI sobre sua relação com a persona de Diamanda Galás: “Não conheço ninguém que tenha dedicado sua vida e energia mais inteiramente a seu trabalho do que Diamanda. Não conheço ninguém que tenha escalado a face da lua com sua voz como Diamanda, que se sentou sozinha na escuridão e procurou tanto como ela. Ela deu mais de si do que podemos imaginar. Ela busca a excelência a cada respiração, seu canto é incomparável, ela é olímpica em sua habilidade e, simplesmente, está sozinha em seu ofício. Ela é a Maria Callas dos nossos dias e não tem igual. Ela manteve-se fiel às suas intenções ao longo da sua carreira, brutalmente fiel aos seus valores”.
Incentivada por seu pai, Diamanda foi introduzida ao piano ainda aos três anos de idade e logo teve uma formação musical voltada para a música clássica. Ainda na infância, também teve aulas de cello e violino e contato com o jazz, o blues e ritmos clássicos gregos – sua mãe era de ascendência grega e seu pai de ascendência egípcia. Além da música, a artista também tinha uma intensa relação com a literatura clássica, indo de nomes como Edgar Allan Poe e Marquês de Sade à pensadores como Nietzsche. Curiosamente, Diamanda não foi direto para uma formação artística, formando-se em bioquímica, com especialização em imunologia e hematologia – um tanto quanto distinto, mas até que fará sentido com o objeto de estudo ao qual ela se dedica e que desdobramos nesse texto, isto é, a síndrome da imunodeficiência adquirida.
É só na pós-graduação que ela fará uma “master” em música, isso tudo nos anos 1970. “The Litanies of Satan”, o primeiro disco, só chegaria em 1982, uma obra ainda hoje assustadora e desafiadora. De caráter operístico, o disco tem duas peças: o lado A traz “Eyes Without Blood”, uma adaptação de quase 18 minutos de um texto de Charles Baudelaire; o lado B é uma experiência de filme de terror chamada “Wild Women with Steak-Knives”. É um disco em que Diamanda chega com os dois pés na porta. Ouça por sua conta e risco e se surpreenda. Seus dois primeiros trabalhos são excelentes (o segundo, “Diamanda Galás – AKA Panoptikon – AKA The Metalanguage Album”, saiu em 1984), porém é em seu terceiro lançamento que chegamos ao objeto desse texto: sua trilogia da AIDS, formada por “The Divine Punishment” (1986), “Saint of the Pit” (1986) e “You Must Be Certain of the Devil” (1988), discos que depois foram reunidos no box “Masque of the Red Death” (1988). Nesse texto também incluiremos “Plague Mass”, performance de 1989 lançada em disco em 1990, e que funciona como um ato final da trilogia da AIDS – aqui falamos essencialmente desse período artístico, mas reforçamos que o HIV/AIDS é até hoje um tema fundamental na obra de Diamanda, sendo ela uma ativista importante da causa, com ações marcantes ao lado do coletivo ACT UP.
Cercada por amigos, artistas e até familiares que foram diretamente impactados pela epidemia de HIV/AIDS no começo dos anos 1980, Diamanda Galás faz de sua trilogia uma experiência excruciante sobre a dor, o medo e o desamparo que pairavam sobre aqueles tempos. Em 1986, Galás lança “The Divine Punishment” (acima), obra de abertura de sua trilogia, onde os sons de sintetizadores analógicos e piano tocados pela artista se unem ao trabalho de Dave Hunt, criando as bases para cantos quase fúnebres que criam diálogos entre textos do Antigo Testamento com trechos das Lamentações e do Livro dos Salmos, mais especificamente os Salmos 22, 59 e 88. Esse contraponto entre textos bíblicos e sagrados é uma forma de usar das próprias armas dos que usavam a religião como forma de criar uma caça às bruxas: se eles nos apontam como os culpados pela nossa própria agonia, Galás escava nos próprios textos religiosos um meio de ir além e de tensionar a hipocrisia e o ódio.
“The Divine Punishment” foi lançado em 30 de junho de 1986, data na qual, nos Estados Unidos, estados como o da Geórgia estavam discutindo leis para criminalizar a sodomia, isso numa altura que mais de 15 mil norte-americanos já haviam morrido em decorrência da AIDS. Em 12 de agosto, Philip-Dimitri Galás, irmão de Diamanda, morreu aos 32 anos, com insuficiência renal e pneumonia, em decorrência da AIDS. Dramaturgo, diretor, artista e empresário, Philip-Dimitri tinha completado 32 anos um mês antes de sua morte. Um escritor jovem e que ainda estava vendo seus trabalhos sendo reconhecido aos poucos pelos EUA, Philip-Dimitri trabalhou incansavelmente nos meses finais de sua vida e conseguiu finalizar algumas obras que vinha trabalhando – no ano de 1986, a atriz Helen Shumaker, que era uma parceira importante de trabalho do dramaturgo, levou aos palcos de São Francisco duas montagens de seus textos finais.
17 de novembro do mesmo tenebroso ano, Diamanda Galás apresenta “Saint of the Pit” (acima), o segundo ato dessa trilogia, um disco que esmiúça a dor, o sofrimento e a agonia tendo como inspiração textos clássicos de poetas malditos franceses como Charles Baudelaire, Gérard de Nerval e Tristan Corbière. Estes dois primeiros atos lançados em 1986 são marcados por uma sonoridade completamente dilacerante em que a dor, o medo e a angústia se tornam quase palpáveis para o ouvinte. Esses atos iniciais funcionam como uma via crucis da artista por aquela dor que ela estava vendo e sentindo ao lado dos seus. “You Must Be Certain of the Devil”, o terceiro capítulo de “Masque of the Red Death”, foi gravado em 1987, mas chegaria ao público apenas em maio de 1988. Aqui, Galás se debruça sobre universos da música gospel norte-americana e, mais uma vez, as vira do avesso, pegando canções sobre culpa, pecado e perdão colocar em discussão o preconceito, o medo e a estranha necessidade de culpabilizar os outros a partir de vieses religiosos que deveriam ser pessoais. Uma canção tradicional como “Let My People Go” ganha contornos tortos e assume outro caráter na voz da artista – essa faixa se tornou quase um clássico no repertório de Galás. Outras canções como “Malediction” ou mesmo a música-título são exemplos interessantíssimos da força desse disco. Dentro desse cenário, esse pode ser considerado o disco mais acessível dos citados nesse texto, especialmente por que aqui vemos conexões ricas e interessantes da artista com o rock industrial, o darkwave e outros subgêneros em voga na década de 1980.
Vale fazer um parêntese, pois na virada para os anos 1990, além de trabalhar em sua própria trilogia sobre a AIDS e em suas atividades de ativista, Diamanda também participou da seminal trilogia da AIDS de Rosa von Praunheim, cineasta alemão fundamental para o cinema queer. Entre 1989 e 1990, Praunheim dirigiu “Schweigen = Tod” (Silêncio = Morte), “Positiv” (Positivo) e “Feuer unterm Arsch” (“Fogo embaixo do seu rabo”), três documentários que constroem um interessante panorama sobre a situação do HIV/AIDS em Berlim e também em Nova York, e é nesta segunda cidade que Diamanda aparece no filme de 1990, “Positiv”, tanto falando sobre a situação da AIDS nos EUA, quanto falando da importância da arte e do ativismo nesse momento. Diamanda ainda performa para as lentes de Praunheim uma das canções de sua trilogia.
Voltando à trilogia de Galás, os três discos foram lançados em vinil pela Mute Records, importante gravadora independente britânica que havia se tornado a responsável pela carreira da artista (assim como a de Nick Cave and the Bad Seeds, Depeche Mode, Wire, Erasure e Laibach, entre outros). Por isso, em um movimento bastante interessante e moderno para 1988, eles decidem reunir os três discos em uma coletânea de CDs, um box chamado “Masque of the Red Death”, título em referência ao conto “A Máscara da Morte Rubra”, de Edgar Allan Poe. O texto de horror de 1842 se passa em uma região que vem sendo devastada pela “morte rubra”. Neste cenário, o príncipe Próspero decide reunir e trancar, em uma abadia fortificada, mil amigos escolhidos entre os cavaleiros e as damas de sua corte. Após alguns meses de confinamento, quando a peste está em seu ápice do lado de fora da abadia, o príncipe decide oferecer um baile de máscaras, porém este baile será invadido por um intruso e é nesse foco que a história ganhará seu principal enfoque. De caráter simbólico e metafórico muito forte, o texto de Poe voltou a ganhar circulação e muitos leitores recentemente, nos anos de 2020, com o avanço da pandemia de covid-19.
O box “Masque of the Red Death” traz em seu encarte o texto “A plague mass in 3 parts”, algo que em uma tradução livre seria como “uma missa sobre a peste em 3 partes”. Essa missa de Diamanda Galás em torno da AIDS seria realmente celebrada em uma igreja nos dias 12 e 13 de outubro, quando ela levou o espetáculo “Masque of the Red Death (1984 – end of Epidemic) – There No More Tickets To The Funeral” para a Catedral de São João, o Divino, em Nova York. Diamanda não é uma amiga da igreja, nem nada disso, e vale resgatar um episódio ocorrido um ano antes: já morando em Nova York no final dos anos 1980, a artista se uniu ao importante grupo de ativistas da Act Up e, entre as muitas atividades ousadas e precursoras do grupo, Galás esteve ao lado deles no ato que ficou conhecido como “Stop The Church”, que ocorreu em 10 de dezembro de 1989, na Catedral de São Patrício, na Quinta Avenida, em Nova York, que era então coordenada pelo cardeal John Joseph O’Connor. O cardeal era uma importante voz da igreja nos EUA que era contra a distribuição de preservativos e lutava pela proibição do ensino de educação sexual nas escolas. Em função disso, os ativistas invadiram uma missa e interromperam o cerimonial para relembrar a conivência da Igreja Católica perante as mortes de pessoas em decorrência da AIDS. Obviamente, muitos ativistas foram presos – alguns chegaram a ser presos ainda dentro da igreja. John Joseph O’Connor foi uma importante voz contra os direitos de pessoas LGBTQIA+ até a sua morte em 2000 e sua trajetória é marcada por nebulosos casos em que ele chegou a proteger e auxiliar padres acusados de abusos sexuais dentro da igreja.
Enfim, voltemos ao espetáculo “Masque of the Red Death (1984 – end of Epidemic) – There No More Tickets To The Funeral”, pois ele viria a ser lançado em disco em 1990 sob o título de “Plague Mass”, com uma das capas mais incríveis e aterrorizantes da carreira de Diamanda Galás (acima). Este registro ao vivo é um manifesto absurdo e poderoso sobre a culpa e o sangue que carregam todos aqueles que silenciaram, todos aqueles que consideraram sua moral acima de sua humanidade e todos aqueles que tiveram em suas mãos o poder de fazer a mudança, mas optaram pela complacência. A abertura com “There Are No More Tickets To The Funeral” é um pé na porta poderoso com seus mais de 13 minutos, seguindo da tensão destruidora de “This Is The Law of the Plague”. O momento mais forte e excruciante do disco se encontra na dobradinha que abre com “I Wake Up and I See The Face of the Devil” e segue em “Confessional (Give Me Sodomy or Give Me Death)” em que ela conta a história de um personagem agonizante que, em seu leito de morte, vê anjinhos implorando para que ele enfim confesse seus pecados, ao que ele responde “Yes, I confess: / Give me sodomy or give me death!” (Sim, eu confesso: / Dê-me sodomia ou dê-me a morte!”). “Let Us Praise the Masters of Slow Death” é outro petardo que vale ser ouvido e acompanhado da letra completamente vociferante assinada por Galás.
“Plague Mass” é o epílogo perfeito da trilogia de Diamanda Galás, um ato como que inacabado, já que ela mesmo deixa marcado no título do espetáculo “1984 – fim da epidemia”. Em 2024, ainda não chegamos a esse fim. Segundo um relatório da ONU, a pandemia da AIDS pode acabar até 2030, porém essa ainda é uma previsão que pode ser alterada, considerando que a desigualdade no acesso a tratamento e profilaxia é um dos desafios a serem superados por diferentes países no mundo – o Brasil mesmo, que sempre foi uma referência mundial no enfrentamento ao HIV/AIDS, passou por maus-bocados nas mãos de governos de direita que tentaram ao máximo desmantelar nossos programas de prevenção e tratamento.
Em 2024, falamos cada vez mais em pensar e criar novas narrativas sobre o HIV/AIDS, outras narrativas que apontam vida e resistências, questões que podem ser vistas em interessantes trabalhos nacionais, como no filme “Deus tem AIDS”, de Gustavo Vinagre e Fábio Leal, ou no texto teatral de “A doença do outro”, de Ronaldo Serruya, que ganhou edição em livro (se não leu, fica a dica: leia). Por isso mesmo, retornar ao universo de “Masque of the Red Death” soa como o contrário, pois ainda é um retorno a um espetáculo sobre morte, agonia e dor. Não é essencialmente o tipo de narrativa que almejamos sobre a AIDS hoje, mas o trabalho fundamental de Diamanda Galás é tão poderoso em remoer sobre as dores que ela vivenciava naquele espaço-tempo que acabou se tornando um manifesto poderoso sobre abandono, sobre medo e sobre falta de humanidade – a ousadia de Galás de remexer em textos e signos religiosos como forma de reforçar os discursos rancorosos de uma parcela conservadora da sociedade ainda é um golpe de mestre. Retornar à via crucis da AIDS ao lado de Galás é como descer ao “Inferno” de Dante Alighieri, é como um retorno aos horrores que outros tantos passaram, é novamente um lembrete de que não podemos deixar esse tipo de coisa se repetir e de que não podemos esquecer daqueles que vieram antes.
Depois de mais de 40 anos dos primeiros casos de HIV/AIDS, hoje em dia se vive bem e com qualidade de vida: atualmente uma pessoa com HIV tem tanta expectativa de vida quanto uma pessoa que não vive com o HIV. E nesse cenário, precisamos de duas frentes: uma que aponta novos futuros e uma que não esqueça as nossas chagas do passado, pois só assim poderemos avançar!
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava.