texto de Renan Guerra
Em 2008, a MTV Brasil colocava na rua uma campanha que questionava as pessoas sobre o que elas entendiam sobre HIV/AIDS naquele momento, sobre como era viver com HIV no século XXI. A MTV, em seus tempos de Grupo Abril, foi um ponto importante de comunicação sobre HIV/AIDS para a geração da virada do século e suas campanhas fizeram história ao tratar do tema sem tabus e com uma liberdade que outras emissoras nunca tiveram a ousadia de tatear. Naquele momento já falávamos em qualidade de vida para pessoas com HIV e de lá pra cá esse tópico se tornou cada vez mais uma questão importante, que reapareceu em diferentes projetos, como por exemplo no documentário “Carta para Além dos Muros” (André Canto, 2019) ou mesmo na série “Deu Positivo”, projeto independente documental que apresenta a história de pessoas vivendo com HIV e que é exibido pela atual MTV Brasil. Ainda assim, quando pensamos em HIV/AIDS em 2024, as imagens que muitos têm atreladas ao vírus continuam sendo as mesmas que pipocavam nos anos 1990: as figuras cadavéricas de homens doentes, as marcas causadas pelo sarcoma de Kaposi e a fragilidade desses corpos. De diferentes modos, viver com HIV em 2024 é ainda viver em torno desses estigmas e dessas imagens, é viver tendo que buscar redesenhar outras narrativas.
Em “A Doença do Outro”, o ator e dramaturgo Ronaldo Serruya, busca criar novos parâmetros sobre o que é se viver com HIV nestes tempos. Vivendo ele próprio com HIV há muitos anos, Serruya cria em seu texto uma peça-palestra, em que o ator-palestrante conduz a plateia em um diálogo que busca discutir conceitos e bagunçar diversas questões em torno da AIDS e do HIV. Para isso, o autor-ator parte da obra de Susan Sontag em seu seminal “A doença como metáfora” (1978), ensaio em que a autora desdobra sua experiência com o câncer para entender como a sociedade entende as divisões entre quem é sadio e quem não é – vem daí a “doença do outro”. Sontag tem reflexões fundamentais para pensarmos tanto a representação do câncer, quanto do próprio HIV, uma vez que seus dois textos sobre as metáforas das doenças foram lançados por aqui conjuntamente no volume “Doença como metáfora / Aids e suas metáforas” (Companhia das Letras, 2007).
No texto de Ronaldo Serruya, os pensamentos de Sontag dialogam com outras propostas de importantes pensadores – todos eles, figuras que nascem desse pensamento dos corpos dissidentes, sejam mulheres, negros, pessoas trans e todas as unicidades que nos colocam nesse espaço de “o outro” em uma sociedade extremamente branca, cis e heterossexual. Audre Lorde, Grada Kilomba, Paul B. Preciado e Patricia Hill Collins surgem em atos que apresentam seus conceitos teóricos e os aplicam, a sua medida, às vivências de Serruya e seu olhar sobre as construções sociais do HIV/AIDS nos últimos 40 anos. Não vamos esmiuçar todos esses recortes para também não entregar todos os ouros de “A Doença do Outro”, mas vale citar aqui o interessante casamento que Serruya faz de sua narrativa com a pesquisa de Patricia Hill Collins e seu conceito de “imagens de controle”, que, segundo a socióloga, são construídas e repetidas para legitimar processos de subalternização que determinam os lugares sociais estigmatizados destinados aos negros, em especial, às mulheres negras. A marginalização desses corpos entendidos por Collins se conectam aos corpos com HIV que Serruya trabalha e por isso há uma conexão/leitura desse pensamento que não é necessariamente ortodoxa, mas que faz muito sentido. Podemos pensar, por exemplo, que “A Doença do Outro” parte dessa perspectiva de homem gay branco de Serruya e já nesse contexto esse diálogo com as imagens de controle se mostra extremamente forte, por isso essa brecha nos faz vislumbrar como essas imagens agem sobre os corpos negros HIV positivos e como podemos nos aprofundar num universo de outras narrativas e debates dentro disso.
O conceito de peça-palestra se mostra realmente eficaz nessas intersecções que o trabalho de Serruya cria – nessas portas que ele abre para nossas outras reflexões. Em tempos de auto-ficção em alta, o autor poderia simplesmente recontar sua história e repassar suas experiências com o HIV, porém o que ele cria aqui vai muito além, expandindo discussões e propiciando ao público e/ou leitor a possibilidade de se questionar de seus próprios fantasmas, estigmas e conjecturas. É interessante até pensar que diferentes textos tratam o espetáculo de Ronaldo como algo incômodo em seus questionamentos e afirmações. E aí, refutamos: incômodo para quem? Para quem vive com HIV, o texto de “A Doença do Outro” é mais como um chamamento à vida, um relembrar de que existimos de diferentes modos e que não devemos seguir guetificados, que nossa existência não deve ser motivo de vergonha. Por isso mesmo, Serruya cria em seu texto chamamentos para que as pessoas abandonem antigos estigmas em torno de palavras como HIV e AIDS e que entendam que a vida pode ser festa, independente do vírus. Desenvolvida e levada aos palcos em meio às transformações causadas pela pandemia, é normal que muitas pessoas criem paralelos entre o texto de Serruya e todos os enfrentamentos que passamos enquanto sociedade frente ao coronavírus. De todo modo, “A Doença do Outro” nos relembra também das diferenças que há entre esses dois vírus e momentos, e como a estigmatização de certos corpos se tornou uma chaga a ser questionada e ainda rearranjada.
O espetáculo de Serruya foi uma das obras contempladas no edital da 7ª Mostra de Dramaturgia em Pequenos Formatos Cênicos do Centro Cultural São Paulo (CCSP) e foi exibida ao público a partir de 2021. O lançamento de seu texto em livro – via Editora Javali e acrescido de prefácio de João Silvério Trevisan e de críticas de Kil Abreu, Amilton de Azevedo e Ivana Moura – apenas reforça a importância de se fazer reverberar todas as teses e propostas dessa peça-palestra. Mesmo em sua densidade, “A Doença do Outro” é leitura curta, para constantes revisitas, é livro para presentear, do tipo que deve circular de mão em mão, para ser lido por quem é HIV negativo, por quem é heterossexual, por qualquer um que tenha um bocadinho de humanidade perante o outro. Relembrando o slogan clássico do Act Up, “Silêncio = Morte”, portanto leia, compartilhe e fale sobre!
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava.