entrevista de Alexandre Lopes
Cru, intenso, carismático, rebelde, eclético, espiritual… a lista de adjetivos que se aplicam a Fantastic Negrito com certeza pode ser maior que essa, mas não vamos nos alongar muito. O projeto do norte-americano Xavier Amin Dphrepaulezz mistura blues, rock, R&B, funk e soul, criando uma fusão de estilos que chama atenção não só pela sonoridade, mas também pela trajetória cheia de reviravoltas pessoais e profissionais. Dphrepaulezz passou de um promissor astro pop nos anos 1990 para uma figura quase mística, renascendo em 2014 sob o nome de Fantastic Negrito, após uma série de dificuldades pessoais e um grave acidente de carro que o deixou em coma por três semanas e consequentemente limitou os movimentos de sua mão direita.
Mas o choque dessa experiência traumática foi, de certa forma, o que catalisou sua reinvenção. Afastado da música desde 2007, ele abandonou o desejo de se tornar uma estrela do rock e ressurgiu em 2014 adotando uma nova abordagem mais rústica para sua música. O foco passou a ser a conexão humana e a liberdade criativa, algo que ele encontrou ao tocar nas ruas e estações de transporte público dos Estados Unidos.
“Bastou eu parar de querer ser um rockstar para que o reconhecimento viesse”, afirmou o músico em diversas entrevistas. A mudança de identidade de Xavier para Fantastic Negrito não foi apenas uma reviravolta estética, mas uma reencarnação artística. Negrito se tornou algo quase espiritual para o próprio artista, uma entidade que transcende sua persona anterior. O novo nome trouxe consigo uma música mais dura e vigorosa, sem as pretensões de agradar o mercado fonográfico.
E ironicamente, a mudança não demorou a render frutos comerciais: em 2015, ele venceu o concurso Tiny Desk da NPR, e em 2016, seu álbum “The Last Days of Oakland” conquistou o Grammy de Melhor Álbum de Blues Contemporâneo. A partir daí, sua carreira deslanchou, com novos prêmios e álbuns de sucesso, como “Please Don’t Be Dead” (2018) e “Have You Lost Your Mind Yet?” (2020). Nesse interim, Negrito dividiria o palco com artistas como Sturgill Simpson, Chris Cornell e Bruce Springsteen, além de colaborar em estúdio com nomes como E-40 e Tank and the Bangas.
Seu mais recente lançamento, “Son of a Broken Man” (2024), lançado em outubro deste ano, mantém a pegada introspectiva e de resistência, explorando temas sensíveis como a relação difícil de abandono e mentiras de seu pai e o processo de cura e autossuperação. O álbum também traz uma parceria com Sting na música “Undefeated Eyes”. A história dessa colaboração começou depois que o ex-The Police o viu se apresentar ao vivo e ficou impressionado com sua performance. Após uma série de encontros e conversas, a parceria floresceu e gerou uma colaboração musical que foi registrada anos atrás e que finalmente saiu no novo disco.
A turnê do novo disco trouxe Fantastic Negrito ao Brasil pela terceira vez, para um show único no fim de outubro no Cine Joia (saiba como foi). Na véspera dessa apresentação, Xavier contou via Google Meet para o Scream & Yell um pouco mais sobre o disco “Son of a Broken Man”, como aconteceu essa parceria com Sting e o que aprendeu com Chris Cornell durante as turnês em que foi atração de abertura. Confira o papo abaixo.
Oi Xavier, como você está?
Eu estou melhor do que algumas pessoas, mas não tão bem quanto outras, estou mais ou menos no meio.
Então, você lançou recentemente um novo álbum, “Son of a Broken Man”. O que você acha que fez de diferente nele em comparação com os anteriores?
Eu demiti o produtor. Toda vez que faço um álbum, eu demito o produtor e começo minha carreira musical de novo e tento escrever uma música, porque meu objetivo é fazer uma música na vida. Não sei se já consegui, mas sempre penso que as músicas importam. Eu aprendi isso com os Beatles: você tem que fazer músicas, não importa o que aconteça, se você acredita nas músicas, isso é o que mais importa quando você faz o álbum. Então, se livra do produtor anterior, se livra dos conceitos, se livra de tudo o que deu certo, faça algo muito honesto e verdadeiro e conte uma história.
Bem, você disse que gosta de fazer músicas, escrever músicas. Este é o seu sétimo lançamento como Fantastic Negrito. Parece que você tem lançado um novo álbum a cada dois anos, mas dessa vez o intervalo foi mais curto. Você sente que está se tornando mais prolífico agora?
Não sei se me sinto assim. Embora eu não estivesse tentando fazer algo a cada dois anos, estava acontecendo assim e sigo com isso. No último álbum, eu refiz o mesmo álbum, mas em formato acústico, porque isso estava me chamando e agora eu tenho um outro álbum. Então, eu não tenho uma intenção, não tenho um desejo, eu só estou respondendo ao chamado dos Deuses da África e os Fantasmas do Mississippi.
É como se você não controlasse o processo, o processo de escrever músicas que te controla, te impele, certo?
Sim, me impele. Se eu não sentir nada, não vou fazer nada. Mas o mundo é a minha experiência, e ela é muito rica. Eu sou muito sortudo por fazer isso da vida e tenho um jardim muito grande de onde posso colher coisas. E se eu me sentir compelido a fazer um álbum, então eu faço.
Mas, como você faz isso? Você escreve muitas músicas e depois escolhe: ‘Ah, essa aqui é boa para o álbum, essa aqui eu não vou colocar nesse álbum, vou usar no futuro’, algo assim? Como funciona?
Bem, eu acho que eu escrevo músicas porque não consigo parar de escrevê-las. E aí, quando eu tenho um conceito, tento encontrar aquelas músicas que escrevi e ver se elas se encaixam nele. A música de abertura desse álbum [“Runaway From You”] provavelmente tem mais de 20 anos, literalmente. Então eu tirei ela de lá, pensei ‘Ah, posso fazer algo com isso’. Eu fiz uma música com o Sting há uns cinco anos, eu gravei ela há muito tempo, mas agora eu sinto ‘OK, essa é a mensagem que eu quero agora’. “Undefeated Eyes” parece boa para “Son of a Broken Man”, estamos falando de questões muito pessoais do coração, falando sobre amor, confiança, traição, o relacionamento, a luta entre pessoas, entre pais e filhos. Então agora está pronto. Eu gosto de conceitos, então eu escrevo o tempo todo, não tem como saber quando. Como eu disse, a primeira música do álbum é um riff de mais de 20 anos atrás, e eu adoro esse som, então escrevi uma música para aquele riff, para aquele som pesado de pedal fuzz. Eu pensei ‘onde está aquele pedal? Não sei onde está, mas senti algo, uma história sobre fugir, de ser expulso de casa quando eu tinha 12 anos’
Sim, eu sei que o conceito do álbum é principalmente sobre seu pai e coisas assim. Você fica realmente emocionado quando toca essas músicas ao vivo?
Sim, eu fico emocionado. E eu acho que deveria ficar, porque a música foi toda baseada em uma experiência emocional e se eu não ficasse emocionado, eu ficaria preocupado. Mas esse álbum veio com muito medo, muitas lágrimas, muita hesitação, muita incerteza. E isso faz um grande álbum, eu acho.
É uma boa receita!
Sim!
Você falou sobre a música com o Sting. Como isso aconteceu? Como surgiu essa colaboração e como foi gravar o vídeo e a música com ele?
Bem, eu acho que o Sting me pediu para abrir o show para ele no Novo México, então eu fui e percebi, quando olhei para o lado esquerdo do palco, que ele estava assistindo ao meu show. Eu pensei: ‘Bom, isso é legal’, mas aí ele continuou lá e eu comecei a me sentir pressionado. Esse cara, que está fazendo discos desde os anos 1970, discos bons, discos clássicos, ele está tipo a 3 metros de distância de mim, assistindo ao meu show… E depois, quando acabou, a gente trocou algumas palavras boas e, quando ele estava vindo para San Francisco, que é a minha área, eu me lembro de ter falado: ‘Ei, eu tenho uma música, mas não vou cantar nela, o que você acha dela?’ E ele falou: ‘Ah, sim, eu posso cantar, estarei aí amanhã, segunda-feira.’ Aí eu falei: ‘Segunda-feira?’ E aí eu comecei a falar para todo mundo: ‘Limpa o estúdio, o Sting vai chegar, temos que arrumar tudo!’ Então, isso é o que eu lembro, porque a gente nunca limpava direito o lugar. Aí a gente chamou um amigo nosso para preparar uma boa refeição, porque o meu estúdio fica em uma área bem ruim, e eu não queria sair para comer ali perto, é uma área muito feia. Eu acho que, quando o Sting chegou à minha porta, uma prostituta estava passando na rua e ele falou: ‘Que parte de Oakland é essa?’ Depois disso, a gente entrou, fez uma ótima sessão e aprendi muito. E ali estava um deus no meu estúdio, ele foi muito esclarecedor e humilde.
Que legal! Falando sobre colaborações e influências musicais e coisas assim, sei que você, como fã de Chris Cornell, preciso te perguntar. Sei que você fez turnês com ele…
Sim, eu fiz três turnês com ele.
Como era o seu relacionamento com ele?
Ele era como um irmão mais velho, uma das pessoas mais gentis, calorosas e altruístas que já conheci na minha vida, nada além de apoio e incentivo. Bem, eu fui muito sortudo por tê-lo conhecido no breve tempo em que o conheci. Eu não poderia ter pedido nada mais, ele foi uma das melhores pessoas que já conheci, e aprendi tanto sobre fazer um show solo com o Chris, porque eu realmente não sabia como ficar ali com a guitarra e prender a atenção da plateia, sabe? Isso era novo para mim, então eu aprendi isso com o Chris.
Eu sei que ele soube de você porque alguém enviou um vídeo seu tocando na rua…
Exatamente.
E ele não conseguia parar de assistir seus vídeos. Como foi o seu primeiro encontro com ele?
Eu pensei que talvez esse cara fosse maluco, porque eu achei que ele estava animado demais com isso, mas pensei: ‘Os fãs dele não vão gostar muito de mim’, eu não achava que ia dar certo. Eu estava preocupado, e pensei ‘esse cara deve estar só louco ou algo assim, por que ele está tão empolgado?’ Mas ele estava certo, sabe, acabou dando certo. Mas eu não tinha confiança, porque eu pensava: ‘Eu sou tão diferente, você é o Chris Cornell, e eu sou o Fantastic Negrito, por que você acha que isso vai funcionar?’ Aí eu fiz uma turnê com ele, depois fiz a segunda turnê, depois fiz a turnê do Temple of the Dog. Eu costumava chamá-lo pelo apelido ‘Christmas Cornell’ [NE: um trocadilho com “Chris” e “Christmas”/Natal; uma alternativa parecida seria “Papai Noel/Papai Cornell”], porque toda vez que ele me ligava era sempre com uma grande notícia, algo incrível, tipo: ‘Oh, legal, você quer fazer uma turnê? Christmas Cornell!'”
Esse é um bom apelido, ele parecia ser uma pessoa muito legal também.
Uma das melhores!
Então, essa é sua terceira vez aqui no Brasil. O que você preparou para o show dessa vez?
Minha preparação é sempre ficar fora do caminho, ficar fora do caminho da conexão que vou fazer com os seres humanos desse país chamado Brasil, dessa cidade chamada São Paulo. Ficar fora do caminho e fazer a conexão, essa é sempre a minha preparação. E isso é, você sabe, um processo de não enrolar, ser autêntico e genuíno e entregar tudo para seus fãs, para o público que vem. Dar tudo a eles. É por isso que fazemos música, queremos nos conectar com as pessoas.
No show de amanhã, você vai tocar com a banda. Você planeja fazer algo sozinho ou é um segredo, ou você não sabe o que vai acontecer, vai apenas deixar rolar?”.
Bem, eu paguei esses caras, então é melhor eles tocarem! Mas às vezes os membros da banda ficam bem bravos porque eu mudo tudo no meio da música, tipo: ‘Todo mundo para!’ (Risos) Sabe, mas isso é o que eu adoro em ser um artista. Eu acho que, na verdade, a banda é que são os verdadeiros músicos, eu sou só um artista. Eu adoro criar e improvisar, e gosto de, às vezes, me perder e não saber o que vai acontecer. Eu acho que essa é a emoção de ser um artista, ser espontâneo e trabalhar de forma orgânica.
Você teve a oportunidade de viajar pelo Brasil além de tocar?
Não, só São Paulo.
Quais são suas lembranças das outras vezes que você tocou aqui?
É sempre muito rápido, entra e sai, entra e sai. Mas dessa vez eu pude passar dois dias. Então, minhas lembranças são… deixa eu fechar os olhos, acho que foi uma plateia muito boa, muito engajada. Hum, dessa vez, é a primeira vez que tive uma experiência gastronômica realmente boa. Nas outras vezes, eu nunca tive boas experiências gastronômicas porque eu não sabia onde ir, mas dessa vez, o Nando me levou, um salve para o Nando (Machado, da For Music)! Ele me levou a lugares com comida muito boa, então eu nunca tinha tido uma boa experiência gastronômica até essa vez.
O que você comeu dessa vez?
Eu comi, ah, arroz, feijão, bananas e peixe. Eles queriam me dar carne, mas eu não como carne vermelha com muita frequência, mas estava muito bom, e depois uma excelente xícara de café.
Legal!. Então, o que mais você sabe sobre o Brasil? Você gosta de música brasileira? Tem algum músico ou banda específica que você admira?
Eu sei que tem um cara dos anos 1970 que eu ouvi bastante, mas eu nunca consigo lembrar o nome… Algo com T? Tem esse cara brasileiro dos anos 1970, que é meio funky. Eu tenho certeza que estou lembrando o nome dele errado. [NE: possivelmente ele estava falando do Tim Maia] E tem uma banda da Bahia que é incrível, uma banda maravilhosa, mas novamente, eu nunca sei os nomes. Também sei que tem um cara clássico que tem uma voz linda, mas eu não sei o nome dele também. Mas ele é dos anos 1970, 1960… A música brasileira é absolutamente linda, então eu gosto de toda a gama da música. E talvez haja um prazer em não saber exatamente os nomes, apenas aceitar que é. Eu acho que eu provavelmente faço isso com a música americana também. Eu nem sempre sei o que é, só deixo tocar e ouvir. Provavelmente, quando eu era mais jovem, eu fazia isso, tipo, ‘quem é esse? Deixa eu ver’. Agora, meu olhar sobre a música é que ela é um organismo gigante, uma coisa que está acontecendo, tem muita música rolando, sempre tem algo tocando agora que eu gosto, mas eu não sei o que é, só ouço através da parede.
– Alexandre Lopes (@ociocretino) é jornalista e assina o www.ociocretino.blogspot.com.br.