Entrevista: “Me senti obrigado a colocar as guitarras nos holofotes”, diz Kieran Shudall, da Circa Waves

entrevista por Guilherme Lage

Uma experiência de quase morte muda a mentalidade de todo mundo. Não importa o quanto uma pessoa seja corajosa, ou pelo menos mostre ser, a perspectiva de juntar as pernas é o suficiente para fazer qualquer um tremer nas bases, principalmente quando existe alguém que precisa da gente.

O vocalista, guitarrista e principal compositor da banda britânica Circa Waves, Kieran Shudall, passou por esse aperto em 2023, quando precisou passar por uma cirurgia no coração e quase morreu ali mesmo, na mesa de operação.

A experiência fez com que o pai de primeira viagem buscasse acolhimento na música para compor o que se tornou o sexto álbum do grupo “Death & Love, PT.1“, que será lançado em janeiro de 2025.

O disco já conta com dois singles, “We Made It” e “American Dream”, que mostram que apesar do tema delicado, o novo álbum não se trata nem um pouco de uma conversa de botas batidas.

Afinal de contas, ver o lado ruim das coisas nunca fez muito o estilo da banda, conhecida pela sua positividade e até uma certa doçura na forma de enxergar o mundo, mesmo tendo que levar a frente uma pesada tocha chamada “indie pop inglês”.

“O mundo já é tão difícil, queremos que num show do Circa Waves as pessoas se esqueçam dos problemas e se divirtam”, crava Kieran durante a conversa que você vai ler abaixo.

O novo disco segue o elogiadíssimo “Never Going Under” (2023) e o EP “Hell On Earth”, lançado um ano antes. No papo, o músico ainda fala sobre como é ser uma inspiração para novas bandas, a paixão pelo som da guitarra e tenta ser otimista: “Estamos tentando ir há 10 anos (ao Brasil). Quem sabe um dia não conseguimos”?

Então, Kieran, esse novo álbum “Love & Death Part 1”, é sobre uma experiência de quase morte, certo?
Algumas partes dele são, sim. Algumas partes são sobre a experiência em si, outras são sobre superar ela e perceber como a vida pode ser boa depois de todas essas coisas.

E tendo uma conexão tão pessoal com esse disco, como a banda te ajudou a trazer as músicas à vida?
Acho que é mais pelo fato de que já somos uma banda agora há mais de 10 anos e tocamos juntos há tanto tempo que meio que já sabemos o que vamos fazer antes mesmo de fazer, sabe? Sabemos a parte que o Joe vai tocar, que o Sam vai tocar. Então é uma coisa que acontece naturalmente agora quando entramos em estúdio. É uma sensação muito boa.

Eu li uma entrevista em que você disse que boa música pode ajudar as pessoas a esquecerem situações ruins, e nesses últimos anos vocês têm encarado esses problemas com muito otimismo. Vocês lidam com alguns desses problemas nos últimos discos, certos?
O último disco foi escrito durante a pandemia, então foi mais sobre como lidar com aquilo. Foi algo universal, todo mundo estava passando pelas mesmas coisas e eu estava tentando meio que dar uma visão mais positiva sobre aquilo tudo, quase que uma visão mais resiliente, porque humanos são muito resilientes e muito fortes, as pessoas conseguem superar as coisas. Então o disco meio que tem essa pegada. Mas de toda forma lidamos com as mesmas coisas. Tentar ser forte, tentar ser resiliente.

As guitarras têm aparecido muito mais nos últimos discos, isso é algo que você realmente queria fazer ou simplesmente aconteceu quando começou a escrever as músicas?
Acho que foi mais ou menos na época do terceiro disco em que eu comecei a fazer coisas mais baseadas em sintetizadores e grooves, mas com o tempo eu fui percebendo o quanto eu realmente adoro tocar guitarra. Não há muitas bandas de guitarra rolando no mundo no momento. Quando eu era mais novo havia milhares dessas bandas que eram gigantescas, e agora não há tantas assim. Então eu acho que me senti na missão, me senti obrigado a colocar as guitarras nos holofotes com a banda, e me apaixonei novamente por músicas feitas na guitarra, para falar a verdade, e voltei a fazer música assim.

Falando um pouco mais sobre o disco novo, vocês estão se preparando para embarcar na maior turnê que já fizeram, certo? Você pode falar um pouco sobre os custos e os gastos de fazer uma turnê depois da pandemia? Especialmente depois do Brexit, porque agora vocês precisam de vistos para ir a alguns lugares na Europa.
É, não está sendo financeiramente bom para as bandas ou para os artistas fazer turnê. O Brexit foi horrível, e agora temos que pagar por vistos para ir a alguns lugares. Se a gente tocar em algum festival europeu, para falar a verdade, não fazemos dinheiro nenhum. Nós só cobrimos os nossos custos. Mas agora nós perdemos dinheiro o tempo todo se vamos à Europa, então vemos isso como uma perda. Na verdade, isso tudo torna muito difícil todo o lance de ter uma banda. Há muitas bandas que se separaram nos últimos anos, porque não é financeiramente viável. Quando você vai envelhecendo vai tendo mais responsabilidades, seja filhos, hipoteca de uma casa, coisas assim. As bandas precisam fazer dinheiro para sobreviver e o Brexit e pandemia tornaram isso muito difícil. Porque todos os custos aumentaram muito e todos os benefícios diminuíram demais, então há muitas bandas que estão passando muito sufoco para sobreviver no momento e eu não sei se muitas vão conseguir. E isso nos inclui, precisamos continuar tentando e no fim vamos ver.

Há essa nova música no disco chamada “American Dream”, fiquei pensando nela. Já que você enfrentou essa experiência de quase morte e outros problemas pessoais, e você também é pai. Essa música tem a ver com querer viver o “sonho americano”? Ter uma família, uma casa, é mesmo sobre isso?
Acho que o simbolismo de um “sonho americano” é bastante universal, mesmo que seja chamado de um sonho americano. O sonho é ser bem-sucedido, ter uma família, uma grana, ter prosperidade e ganhar a vida como uma pessoa boa. É meio que sobre isso, sim, mas também é meio que sobre a primeira vez que fomos para os Estados Unidos e tínhamos essa ideia de que seríamos essa banda grande por lá. Havia todo esse otimismo, que logo foi seguido por não nos tornarmos uma banda grande nos Estados Unidos (risos). Assim como muitas outras bandas britânicas que vão para lá, não é fácil ter sucesso na América. Então é um pouco sobre isso também. Meio que esse otimismo ingênuo que eu tinha da primeira vez que fomos para lá e o quanto ainda penso sobre isso às vezes.

Vocês estiveram bastante na estrada nos últimos anos e tocaram em festivais gigantescos. Como é ter essa experiência? Especialmente para vocês que começaram a tocar bem novos. Como é subir num palco desses?
Ainda é inacreditável pra mim, ainda fico muito nervoso antes de subir no palco (risos), quando estou ali do lado esperando para entrar. Eu sou muito grato por poder tocar para muitas pessoas, porque quem sabe por quanto tempo eu vou poder fazer isso? É uma coisa incrível poder se conectar com tanta gente assim. Mas é estranho também, muito incomum estar em frente a milhares de pessoas. É tipo uma droga, sabe? É um sentimento incrível ouvir as pessoas cantando suas músicas para você. Eu ainda amo. E levando em consideração a pandemia, quando não pudemos fazer turnê por dois anos, realmente me mostrou o quanto é bom fazer esses shows. Amamos e esperamos poder tocar em festivais muito mais vezes.

No último disco há alguns assuntos que eu acho que muitas pessoas se identificam, como sociedade e preocupação com o futuro, especialmente quando falamos de problemas mundiais como mudanças climáticas, guerras. Acho que sempre há algo a ser dito, porque estamos cercados de guerra e miséria, mas vocês sempre têm uma visão positiva sobre isso. Algo meio que “talvez seja possível mudar”. Essa percepção está certa?
Eu acho que tentar ser positivo é importante para mim, não importa o quão ingênuo isso possa ser. Porque ou você é positivo ou é bem negativo. Sabemos que mudanças climáticas estão acontecendo, sabemos que os políticos não estão fazendo um bom trabalho, que a extrema-direita parece ser mais prevalente do que nunca na Inglaterra, Estados Unidos e em outros países. É difícil ver todas essas coisas e ser positivo, mas eu gosto de pensar que a humanidade vai dar um jeito e melhorar tudo isso (risos). E outra coisa é que as pessoas são bombardeadas pelas notícias todo dia, com coisas negativas. Então quando você vem a um show do Circa Waves, espero que seja uma experiência catártica, que tenha uma boa energia e positividade, que você se sinta bem depois. Que seja como uma droga contra todas as coisas ruins.

Vocês já estiveram na estrada com bandas como Libertines, Black Keys, bandas incríveis e influentes. Agora vocês é que estão inspirando uma nova geração de bandas mais jovens. O quão importante é para vocês manter esse fogo aceso para as gerações mais jovens?
Acho que isso é o que eu mais gosto, sabe? Quando algum garoto começa uma banda porque nos ouviu. Isso é demais, é o suficiente para mim, eu fico tão feliz. Eu acho que uma guitarra é uma coisa incrível, é como uma terapia gratuita para o resto da sua vida, se você conseguir pegar uma guitarra e aprender a tocar. Eu acho que mais crianças e jovens deveriam aprender a tocar instrumentos. Piano, guitarra, bateria, tanto faz, e se uma banda os inspira a fazer isso, então é incrível, eu amo essa ideia. Então, sim, eu amaria ver mais bandas. Acho difícil ver mais bandas se formando agora, porque é tão tentador ser um artista solo, mas seria demais se jovens se juntassem e tocassem música juntos com mais frequência, porque é bom demais pra alma.

Queria te perguntar, como você normalmente compõe uma música? É geralmente com uma guitarra, um metrônomo? Porque você parece ter muita facilidade para compor, estou curioso sobre isso.
Pode ser qualquer coisa, na verdade, sabe? Estou no meu estúdio agora e estou com as minhas guitarras e várias outras coisas para me inspirar. Eu uso muita produção, porque sou produtor também. Geralmente invento alguma batida de bateria e uso um sintetizador. A partir daí isso pode inspirar as partes de guitarra. E porque eu já escrevi tantas músicas, as melodias vocais aparecem tão rápido agora que acho que faço um “beat” que eu consiga cantar em cima. Então dessa forma acho que algo interessante sempre aparece. Se eu vou mantê-la ou não, é outra história. Mas acho que é sempre importante ser algo bom de ouvir, independente se é guitarra, sintetizador ou bateria. Novas texturas criam novas ideias, então estou sempre procurando novos sons para me inspirar. Seja uma banda, ou um artista ou um instrumento. Acho que conforme você vai ouvindo coisas novas, é capaz de criar coisas novas, se é que isso faz sentido (risos).

E esperamos ver vocês por aqui em breve!
Estamos tentando ir há 10 anos (risos). É difícil conseguir datas por aí, nós amaríamos, amaríamos ir à América do Sul. Vamos manter os dedos cruzados. Não sei o que precisamos fazer para ir até aí, mas vamos ver, quem sabe não vamos um dia?

– Guilherme Lage (fb.com/lage.guilherme66) é jornalista e mora em Vila Velha, ES.

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