texto de Davi Caro
Verdade seja dita: poucos atores a despontar nos últimos 35 anos se provaram tão versáteis quanto Hugh Grant. Do alto de seus 64 anos, o britânico, que ficou estigmatizado como galã em filmes românticos (e, às vezes, cômicos) desde meados da década de 1990, vem cruzando uma nova fase em sua carreira – onde parece ter tomado consciência da efeméride de seu período como arrasa-corações, e, de forma graciosa e espontânea, vem escolhendo papéis que deixam claras tanto sua competência, quanto sua disposição em não se levar tão a sério. Seja como um vilão naturalmente canastrão (como o que interpretou em “Dungeons and Dragons: Honra entre Ladrões”, de 2023) quanto como o caricato Oompa-Loompa Lofty (de “Wonka”, do mesmo ano), a versatilidade e o magnetismo do ator vêm se tornando cada vez mais inegável com o passar dos anos.
“Herege” (“Heretic”, 2024) mostra mais uma destas facetas tão imprevisíveis e, ao final, tão triunfais de Grant. No thriller com pitadas de horror, produzido pela A24 com direção de Scott Beck e Bryan Woods (também responsáveis pelo roteiro), o ator assume o papel de antagonista ao mesmo tempo em que contracena com a reluzente dupla composta por Sophie Thatcher (de “Yellowjackets”) e Chloe East (conhecida por seu início de carreira em “True Blood”). Ao assumir um papel vilanesco mais “tradicional”, o inglês consegue, com excelentes resultados, fazer uso de seu charme tão característico de maneira mais tridimensional e dúbia, interagindo de maneira enervante com as duas atrizes em meio a um enredo que, salvo pontuais derrapadas, faz bom uso de todo o talento exibido na tela.
Em meio ao que teria tudo para ser apenas um dia normal de caminhadas e amistosas, porém rejeitadas, abordagens, as jovens missionárias mórmon Barnes (Thatcher) e Paxton (East) se preparam para sua última visita domiciliar antes de retornarem para seu templo. O residente, o recluso Sr. Reed (Grant), se mostra simpático e aberto ao diálogo com as duas garotas, cuja natural hesitação em adentrar a casa do amigável britânico é contornada apenas pela promessa de conhecerem a esposa deste, que, segundo mencionado, vive na mesma casa. É apenas uma questão de tempo até as duas religiosas descobrirem, no entanto, que algo de muito errado existe naquela casa, da qual elas descobrem não serem capazes de sair por conta própria em meio a uma tempestade torrencial que, mais tarde, se transforma em uma nevasca – não antes de terem sua fé desafiada por meio dos questionamentos e proposições articuladas e amistosas, embora perturbadoras e intrigantes, de seu anfitrião. O que se sucede é uma série de provações que põem em xeque a crença e a sanidade das duas missionárias, diante de uma série de macabros dilemas propostos por um indivíduo com objetivos sinistros e, ao que tudo indica, mal intencionados.
É importantíssimo citar os muitos méritos do trabalho desempenhado pela dupla de atrizes que tomam para si o centro da narrativa: tanto Sophie Thatcher quanto Chloe East se sobressaem individualmente, ao mesmo tempo em que suas personagens possuem tamanho nível de química uma com a outra ao ponto de enriquecerem ainda mais uma história com tanto potencial. Ao passo que a “irmã” Barnes de Thatcher se mostra mais vivida e disposta a confrontar os desafios à própria fé apresentados por seu perturbador algoz, a ingênua Paxton trazida à vida por East se vale do melhor desenvolvimento de personagem visto aqui: à medida que o filme se encaminha para seu final, é nela que o espectador consegue se ver mais, sua determinação e aparentemente inabalável fé lutando por auto-preservação frente a provações que vão muito além de sua imaginação.
O destaque aqui, no entanto, não poderia ser outro: em sua forma de gesticular, sua postura e seu sorriso sempre cativante e, em determinados momentos, tenebroso, Hugh Grant chama para si a responsabilidade de ancorar os momentos mais tensos (e intensos) em “Herege”. Seja em seus extensos monólogos, onde paralelos entre diferentes jogos de tabuleiro e canções pop são utilizados para evidenciar seu modo, digamos, particular de enxergar diferentes religiões organizadas (com direito a espertas menções aos The Hollies e ao Radiohead, entre outras referências), ou seja em seus pouco ortodoxos e horripilantes métodos de demonstrar sua própria crença, seu Sr. Reed tem tudo para ser um dos mais memoráveis antagonistas no cinema de suspense a tomar forma nos últimos anos. De fato, sua performance em meio a um elenco tão enxuto (que se vale, inclusive, de uma pontual participação de luxo do ator Topher Grace, quase irreconhecível a princípio) serve para gerar reflexões a respeito das distintas doutrinas adotadas como “verdades absolutas” ao longo dos milênios – e dos vários elementos em comum identificáveis entre elas.
Tal convite à discussão se mostra, no entanto, simultaneamente o maior triunfo e o grande calcanhar de Aquiles no roteiro escrito por Scott Beck e Bryan Woods: apesar de um excelente trabalho de direção, com tomadas claustrofóbicas e movimentos de câmera eficientes ao representarem os dilemas existenciais encontrados pelos personagens, o enredo sofre de certa falta de foco em determinados trechos. Ao passo que, ao longo dos dois primeiros terços, a história é construída de maneira instigante e irresistível, o trecho final sofre de alguns deslizes que poderiam ser interpretados como incerteza narrativa e certa insegurança em uma construção dramática que poderia ser mais assertiva. Ainda que redimidos por um final bonito e poético – e que fecha determinados ciclos estabelecidos anteriormente – e amparados por excelentes atuações, tais falhas podem servir para desconectar espectadores menos dispostos, ou mais exigentes.
À parte disto, entretanto, “Herege” é uma produção que faz uso de um time reduzido e mais do que hábil de intérpretes, embalados por um trabalhos de roteirização e visuais competentes (sem contar a bacana sonorização cortesia do compositor Chris Bacon), cuja combinação resulta em um longa-metragem imperfeito, porém ainda assim digno de nota, capaz de evidenciar dois grandes talentos da nova geração ao mesmo tempo em que sopra vida nova em um currículo longo e bem estabelecido. Tudo isso, por fim, parece ser o suficiente para abordar questões que, apesar de densas e delicadas, nem sempre precisam serem levadas tão a sério para causar impacto.
– Davi Caro é professor, tradutor, músico, escritor e estudante de Jornalismo. Leia outros textos de Davi aqui.