32º Festival MixBrasil: “Maré Alta” dosa beleza e melancolia em narrativa sobre a busca de identidade e aceitação

texto de Renan Guerra

Para o espectador brasileiro que acompanha novelas, televisão e notícias de famosos pode ser natural criar paralelos entre a história pessoal do ator Marco Pigossi e a narrativa que se vê na tela em “Maré Alta” (“High Tide”, 2024). Produzido nos Estados Unidos e dirigido por Marco Calvani – marido de Pigossi –, o filme acompanha a trajetória de um imigrante brasileiro em uma jornada de busca por seu lugar no mundo. Lourenço (Pigossi) viajou para os Estados Unidos após se apaixonar por um norte-americano. Com o fim do romance e apenas com um visto de turista, o jovem se vê fazendo faxinas em casas de veraneio em Provincetown, região litorânea que é uma importante rota de turismo LGBTQIA+. Pensando como conseguir um visto de trabalho para permanecer nos país, Lourenço entra em uma jornada que questiona a sua identidade no mundo, as suas perspectivas de futuro e a sua vivência enquanto homem gay – com o adicional de imigrante latino. A partir disso, o filme de Calvani se desenrola em uma interessante trama que navega pelo romance e o drama de forma delicada.

“Maré Alta” era um roteiro que já vinha sendo construído por Marco Calvani há algum tempo, mas que ganha outras camadas a partir de seu relacionamento com Marco Pigossi. Lourenço, por exemplo, era apenas construído como um imigrante latino no texto inicial, porém ganha nuances extremamente brasileiras a partir da perspectiva de Pigossi. Como dito na abertura deste texto, a experiência real do ator pode influenciar na leitura do público brasileiro. Nos Estados Unidos, Pigossi é apenas mais um ator latino tentando seu lugar ao sol, mas para os brasileiros ele é a figura de um galã da nova geração, um rosto conhecido das telenovelas que construiu uma carreira de sucesso nos folhetins da Rede Globo. Considerando sua trajetória e seu contexto, Pigossi deu um passo corajoso e saiu do armário em 2022 em longa matéria da revista Piauí. Historicamente, muitos atores se mantiveram no armário por medo do ostracismo e do preconceito, tanto que importantes nomes só falaram sobre sua homossexualidade já na terceira idade. Felizmente hoje, com um movimento de atores vindos do teatro e do cinema, estamos vendo novos nomes abertamente LGBTs ocupando diferentes espaços na TV. Após essa saída do armário, Pigossi deu passos importantes de diálogo com a comunidade LGBTQIA+, sinalizando seu posicionamento e sua intenção de ser uma voz ativa nessa frente. Exemplo disso é seu trabalho de produtor no excelente documentário “Corpolítica”, de Pedro Henrique França – filme que também foi lançado no MixBrasil.

Desenhado esse cenário, é simbólico ver Pigossi se entregando totalmente a um personagem que, em alguma medida, dialoga com sua própria jornada. É mais um passo corajoso de se colocar entregue em uma narrativa que trafega por complexas vulnerabilidades. E essa ousadia tem um resultado muito potente: “Maré Alta” nos apresenta um outro Marco Pigossi e revela uma maturidade em sua atuação. O próprio ator observa o filme como uma mudança de rota em sua carreira e credita a Calvani a experiência de um outro tom de atuação. Cria da televisão, Pigossi deixa de lado maneirismos e exageros novelescos e apresenta aqui uma atuação em outro espectro, mais mínimo, que entende as potencialidades do cinema. Lourenço, o protagonista, é personagem de silêncios, de dúvidas não-ditas, de medos contidos e tudo isso se transmite com o olhar, com os gestos, com os movimentos. Pigossi, que tem pose de galã bonitão, cria uma postura que é mais desajeitada, encapsulando o desajuste do personagem.

Criado em uma família evangélica no Brasil, Lourenço encontra nos EUA a possibilidade de viver de forma livre a sua sexualidade e as delícias de seu próprio corpo. Buscando seu lugar no mundo e tentando superar a dor de uma separação amorosa, o personagem acaba se envolvendo afetivamente com Maurice (James Bland), homem gay negro que está de férias com amigos em Provincetown. A aproximação dos dois cria essa narrativa romântica de “Maré Alta”, mas também proporciona outros enfrentamentos dentro da jornada de Lourenço. A tensão racial é algo tateado pelo filme, bem como a experiência de não pertencimento dos dois personagens – um negro e um imigrante latino, ambos gays – em meio a sociedade norte-americana. Além disso, Maurice também expande a perspectiva de Lourenço frente às vivências gays e todas as suas possibilidades e questões. Com atuação delicada, James Bland cria um interessante balanço ao lado de Pigossi, construindo em Maurice um personagem cativante – sua presença traz essa leveza romântica ao filme, criando um balanço que nos apresenta beleza e afago.

Além dos protagonistas, temos outros personagens que circundam essa experiência americana de Lourenço. Scott (Bill Irwin) é o locador da casa onde o protagonista mora e ao mesmo tempo um amigo, em uma relação meio complexa, com nuances nem sempre esclarecidas. Vale citar aqui a participação excelente de Bryan Batt em momento que aponta as próprias complicações da comunidade e seus personagens que ainda ajudam a repetir preconceitos – momento desconfortavelmente excelente no filme. E em pequena ponta temos Marisa Tomei como Miriam, personagem que surge para abrir novas possibilidades na jornada de Lourenço. Tomei foi um dos nomes que auxiliou na produção do filme e seu prestígio – aliado a outros fatores – impulsionou as possibilidades de circulação do longa, que está em exibição no circuito comercial em algumas cidades nos EUA. Infelizmente, “Maré Alta” ainda não tem um distribuidor brasileiro e nem uma previsão de outras exibições por aqui.

Com sessão lotada no 32º Festival MixBrasil, o filme acabou levando pra casa o prêmio do público de Melhor Longa Estrangeiro, uma honraria que apenas reforça as potencialidades de diálogo dessa história com diferentes plateias. “Maré Alta” é um filme que fala sobre encontrar seu lugar no mundo, sobre se entender em suas próprias definições de liberdade e sobre formatar suas possibilidades simbólicas do que seriam os significados de “lar” e “família” e, por isso mesmo, se mostra um filme de delicada beleza, que explora a melancolia dessa jornada com a sinceridade de quem sabe a dor e a delícia de ser quem se é de forma plena.

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– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava

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