texto de Gabriel Pinheiro
A narradora de “Como amar uma filha” (“How to Love Your Daughter” no original) dá início ao romance descrevendo a primeira vez que vê as netas. A filha mora, ao lado do marido e das crianças, em outro país, distante de Israel, sua terra natal. A mulher vê as netas, mas elas não a veem. Ela as observa do outro lado da rua, pela janela, num momento de intimidade e rotina familiar. Ninguém sabe que ela está ali. “Como amar uma filha” é o primeiro romance de Hila Blum publicado no Brasil, pela Intrinseca, com tradução de Nancy Rosenchan.
O que leva uma relação marcada pela extrema proximidade caminhar, com o passar dos anos, para um distanciamento aparentemente irreparável? O que leva uma filha a cortar toda a comunicação com a mãe, se exilando em outro país e iniciando um novo núcleo familiar do qual aquela que lhe deu origem não fará parte? Essas são algumas das questões que Hila Blum investiga neste sensível romance.
Sob um único ponto de vista – o da mãe, Yoela – somos convidados a adentrar no passado de uma pequena família – mãe, pai e a filha única, Lea – marcada tanto pelas alegrias quanto pelas tristezas tão comuns às relações familiares. Numa reescritura da clássica frase de Tolstoi, Yoela diz: “Agora acho que famílias infelizes não me interessaram muito, de modo algum, só me interessava a miséria das famílias felizes, o interior frágil. A família em que cresci, a família que constituí.”
Conhecemos essa mãe e essa filha antes mesmo do nascimento da segunda, numa gravidez traumática, marcada por um quadro depressivo intenso da mãe. Na investigação desse passado, procuramos pistas que nos levem a esse presente marcado pela distância – não só geográfica, mas, principalmente, afetiva. Mas é importante termos em mente que, pelo ponto de vista único da mãe, talvez não estejamos frente a uma construção confiável da memória. Mas, afinal, até que ponto a memória é confiável?
Nessa investigação sentimental, a narradora mergulha no seu próprio passado enquanto filha. No relacionamento com a própria mãe, encontramos, talvez, a gênese de comportamentos que serão tanto repetidos quanto negados quando ela se ver metamorfoseada em figura materna.
“Como amar uma filha” é marcado, ainda, por uma série de diferentes referências a outros livros e histórias que lidam tanto com a maternidade quanto com o feminino, a partir das leituras da protagonista. Alice Munro, Margaret Atwood e Susan Sontag são algumas das escritoras que marcam presença na narrativa, como bússolas que indicam caminhos para essa leitora-narradora. Os capítulos finais seguem num crescente de tensão e expectativa, intercalando acontecimentos do passado e do presente e os efeitos irremediáveis de um tempo sobre o outro.
– Gabriel Pinheiro é jornalista. Escreve sobre suas leituras também no Instagram: @tgpgabriel.