texto de Renan Guerra
Piratininga, subúrbio de Niterói, no Rio de Janeiro. Um bairro de classe média um tanto quanto abandonado pelo tempo. Nesse cenário, uma mãe e sua filha adolescente fazem a sua mudança para uma nova casa. Entendemos que essas duas personagens tem um passado que as levou até aquele ponto da história, mas não sabemos de forma clara o que aconteceu. O que sabemos é que essa é uma antiga casa que faz parte da história da família da mãe, interpretada por Andrea Beltrão. A adolescente Rebeca (Milena Pinheiro) está em uma espécie de castigo, sem poder sair, pelo medo que a mãe tem da crescente violência na região. Esse panorama inicial já deixa um pouco claro que “Avenida Beira-Mar” (2024), de Maju de Paiva e Bernardo Florim, é um filme que se constrói em um recorte específico no qual o não dito e o não contado são também parte desse universo geral – e essa perspectiva tem um sentido quando pensamos que nossas memórias infantis e adolescentes são sempre permeadas por lacunas, por histórias que eram mais dos adultos do que nossas e as nossas, por sua vez, ganham um protagonismo muito maior.
Nessa nova casa, Rebeca acaba ficando fascinada pela menina que passeia de patins rosa pela rua. De forma curiosa, ela acaba se tornando próxima de Mika (Milena Gerassi), sem questionar nada da nova amiga, apenas aberta aquela amizade de duas pessoas “outsiders”: a menina nova na cidade / escola e a menina que anda de patins sozinha pela rua e que apronta pra lá e pra cá. A amizade que nasce entre elas cria elos nem sempre bem claros, mas fortes e sólidos; e aqui faz lembrar as frases finais do filme “Conta Comigo” (Rob Reiner, 1986), quando o nosso escritor / narrador finaliza dizendo: “nunca tive amigos como aqueles que tive quando tinha doze anos. Jesus, e alguém tem?”, parece até uma pergunta tola, mas o fato é que as amizades têm elos distintos em cada fase da vida e numa fase tão formativa como a pré-adolescência e adolescência, estes relacionamentos criam marcas muito fortes. “Avenida Beira-Mar” capta muito bem todas as nuances dessa fase da vida. E a partir daqui deixamos um aviso: o filme de Maju de Paiva e Bernardo Florim pode ser uma experiência muito rica para quem nada sabe sobre a narrativa, então se achar de bom grado, pode parar essa leitura por aqui e retornar após assistir ao filme; não daremos nenhum spoiler, nem nada além do que está na sinopse, mas as reflexões a seguir podem mudar algumas perspectivas iniciais do espectador.
Ao acompanhar o dia a dia de Rebeca e Mika o filme se centra totalmente em nossas personagens adolescentes e deixa de lado o mundo adulto que as cerca, porém esse mundo se impõe sobre as duas. Mika é uma menina trans que, em seus momentos de liberdade, aproveita para viver as experiências mais lúdicas que a constroem, seja passar um batom, vestir um biquíni ou sentir seus cabelos longos ao vento sobre seus patins; mas o seu universo ao redor responde a tudo isso com uma violência que vem de todos os lados, desde os meninos da rua até sua própria família dentro de casa. Para Rebeca, porém, Mika é e sempre será uma menina, ela só trata a amiga no feminino e apenas mergulha nessa amizade descobrindo o mundo com outros olhos, a partir das perspectivas novas que Mika lhe apresenta. E é nesse encontro que as duas embarcam em uma jornada de amadurecimento e de percalços que são duros, mas que ainda assim desaguam em uma narrativa de poderosa delicadeza – parece quase dicotômico que algo delicado e sutil seja poderoso e forte, mas “Avenida Beira-Mar” consegue filmar toda a potência que tem na delicadeza, no cuidado, no afeto e em um olhar carinhoso.
Para que esse resultado seja alcançado, temos como base inicial o roteiro assinado por Paiva e Florim, que se apresenta simples, mas que é cheio de camadas. De todo modo, a espinha dorsal do filme está no elenco. Fazer filmes com atores mirins / pré-adolescentes é sempre um caminho arriscado e que pode cair em atuações forçadas e que até mesmo podem afastar o espectador; mas não é o caso aqui. Milena Pinheiro e Milena Gerassi são cativantes na tela, pois conseguem entregar aquele tédio e aborrecimento típico da puberdade, ao mesmo tempo em que nos envolvem em suas questões e complexidades – ambas caminham em atuações que conversam tanto com um certo naturalismo como também rememoram aqueles filmes juvenis típicos de sessão da tarde, num equilíbrio muito bem ajustado.
Milena Gerassi, a Mika, arrebata com a sua construção de uma personagem que é falha, que erra, que vacila, mas que enfrenta, que subverte e que não deixa de ter humor. No lado dos adultos, Andrea Beltrão está soberba: aqui ela se despe de vaidades e sustenta de forma forte essa personagem cheia de histórias não-ditas, mas que carrega só no olhar uma exaustão de quem enfrentou muito. Por outro lado, temos a presença de Isabel Teixeira como Viviane, a mãe de Mika, em uma atuação complexa e forte. Isabel cria um gestual para essa mãe que é cheia de dúvidas e medos e rancores de uma forma que enche a tela a cada aparição (aqui um parêntese, pois vamos roubar uma referência: na saída da sessão de abertura do 32º Festival MixBrasil alguém afirmou que Isabel Teixeira tinha algo de grandioso e sedutor na tela tal qual Darlene Glória e, sendo essa uma conexão extremamente certeira, registramos aqui e deixamos o crédito para quem disse isso, mesmo que não saibamos quem). Para finalizar, vale apenas um destaque para a presença rápida, mas bela, de Emiliano Queiroz, ator que faleceu há pouco, no mês de outubro, aos 88 anos.
Há outras belezas em “Avenida Beira-Mar”, como sua fotografia interessante, que nos coloca de novo em algum lugar da virada do século, ou ainda seus figurinos e cenários que nos ajudam também a adentrar nesse universo estético daquele tempo. Enfim, é possível se estender em diferentes questões técnicas, mas de todo modo, o que mais pulsa no filme de Maju de Paiva e Bernardo Florim é sua sensibilidade, sua delicadeza e sua doçura ao conseguir captar o que há de belo na amizade juvenil e no amadurecimento, tudo isso sem ignorar o quanto crescer é doloroso, violento e o tanto que pode machucar.
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– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava.