texto de Leandro Luz
“Love is a hustle”, diz o slogan de “Anora” (2024), vencedor da última Palma de Ouro no Festival de Cannes. Seja qual for o contexto, o amor é mesmo uma peleja, e é bem verdade que o novo filme de Sean Baker, cineasta sempre tão interessado nas vicissitudes do norte-americano marginalizado, versa mais sobre a labuta do que sobre aquilo que nos habituamos a chamar de amor.
Anora (Mikey Madison), ou Ani, como ela gosta de se apresentar, é uma dançarina e trabalhadora do sexo, funcionária de um strip club de luxo no Brooklyn novaiorquino. Em um dia comum de trabalho ela recebe uma missão desagradável de seu patrão, satisfazer as fantasias de um jovem russo, filho de um oligarca milionário (isto ela só descobre um tempo depois) cuja única preocupação na vida é se divertir na “América” às custas da fortuna dos pais. O que a moça não esperava era comprazer-se tanto com a situação – ele não a trata mal, a insere em seu patético e ostentoso círculo social e oferece toneladas de dólares em troca dos seus serviços -, e muito menos que de sexo casual a relação escalasse para uma inusitada proposta de casamento. Abruptamente, Ani e Ivan (Mark Eydelshteyn) se casam, de papel passado, em uma viagem ligeira por Las Vegas, com direito a anel de diamantes e deslocamento no jatinho particular do rapaz.
Eis a fábula da Cinderela, recontada através das lentes mordazes de Baker (além de roteirista, diretor e produtor ele também assume as funções de montador e diretor de elenco). Em “Anora”, o conto de fadas só faz sentido por meio da ironia e do gênero da “comédia maluca” (ou “screwball comedy”, para ficar no original hollywoodiano, que passa a ganhar popularidade a partir do período da Grande Depressão), correspondendo ao que Greta Gerwig, presidente do júri responsável por premiar o filme em Cannes, escolheu incluir em seu discurso. Segundo ela, a comissão percebeu em “Anora” um quê de cinema clássico e comparou-o à estrutura narrativa dos filmes de Ernst Lubitsch e Howard Hawks. De fato, há um procedimento narrativo – e um charme – que podemos associar ao cinema clássico na maneira como o filme apresenta as suas personagens e lida com o humor, surpreendentemente leve diante dos temas sérios que circunda. Na trama, logo após se casarem, os pais de Ivan descobrem a sua irresponsável aventura e fazem de tudo para anular o matrimônio, combustível para que o diretor e seus atores joguem ainda mais com os estereótipos e a jocosidade das situações. Ao aceitar o prêmio, Baker reiterou a importância da distribuição para o cinema, a despeito do poder dos streamings e dos novos hábitos do espectador contemporâneo, e afirmou que, em suas próprias palavras: “o futuro do cinema é onde ele começou – na sala de cinema”.
Há uma postura conservadora que se desvela na maneira como Baker fala sobre cinema e realiza os seus filmes (podemos enxergar o mesmo em cineastas como Quentin Tarantino, Martin Scorsese e Paul Thomas Anderson, para citar três célebres nomes que frequentemente emitem opiniões parecidas na grande mídia). Não que, a priori, isto seja bom ou ruim, a depender sempre de como cada filme se organiza formalmente perante os seus temas, mas explica algumas das escolhas artísticas desses realizadores. Em “Anora”, por mais que Baker esteja apaixonado e adote uma postura cerimoniosa para com a sua protagonista, isto não impede que ele também se deixe levar por algumas práticas que colocam Ani em circunstâncias no mínimo controversas. Ela é uma personagem riquíssima, evidentemente, e Madison a interpreta com muita desenvoltura, passeando com muita liberdade entre o erotismo performado, o humor cortante e, principalmente, o relaxamento com relação ao ser e estar no mundo, comportamento tão difícil de alcançar com a naturalidade que ela demonstra. No entanto, há momentos em que perdemos um pouco de vista a sua autonomia enquanto protagonista, e isto se deve à opção de mantê-la amarrada e amordaçada – quando não, ao menos sequestrada – por uma parte considerável do longa-metragem. Não que ela seja incapaz de dominar a cena mesmo nessas condições – Ani é explosiva e a sua força é indiscutível -, mas o artifício incomoda quando o humor, de maneira involuntária, passa a dar lugar ao mal-estar.
A propósito da principal marca de estilo empreendida pelo diretor – o humor como ferramenta para desarmar e desregular a lógica do realismo -, boa parte dos diálogos chistosos e das gags físicas é bem sucedida, pois “Anora” é uma obra bem construída no que tange ao seu timing cômico. O que acaba não funcionando tanto não chega a estragar completamente a nossa experiência com o filme, só o deixa mais longo mesmo; os repetitivos cenários da protagonista “sequestrada” se esvaziam muito rapidamente, e se todo o epílogo protagonizado por Ani e Igor (Yura Borisov), o capanga russo que primeiro a violenta e depois a protege, faz sentido do ponto de vista dramático, a conexão entre os dois, apesar de não ser exatamente forçada, empresta a essas cenas um tipo de desconforto que não nos deixa abraçar o que Baker quer transmitir em termos de acolhimento e empatia. Neste sentido, a cena final soa deslocada justamente porque a sua existência apenas se justifica pela sua função, mas não funciona propriamente como desfecho levando em conta o que vinha sendo construído em termos de tom e de atmosfera até então. Com o gesto do choro de Ani no colo de Igor, sublinha-se que aquela mulher fragilizada só é capaz de encontrar o seu caminho por meio de um porto seguro materializado em uma presença masculina. E pior, é somente por meio do sexo que ela é autorizada a se libertar de um determinado quadro imposto por outrem e retornar à condição inicial, a mesma na qual a encontramos no início da trama.
No afã de encarar a profissão de Ani de forma generosa e progressista, Baker opera um gesto que conserva, cristaliza a imagem e os desejos de sua personagem. Em uma obra como esta, que gosta do risco, que articula inúmeras situações inusitadas e que propõe uma encenação corajosa na maior parte do tempo, é uma pena que não carregue o mesmo espírito para encontrar uma melhor saída para a sua heroína (saída esta, aliás, que não precisaria passar por uma mudança de vida ou de profissão, o que seria absolutamente reacionário, óbvio, mas que poderia cultivar o espírito cáustico e libertário que testemunhamos em vários outros momentos). Ainda que carregue esses problemas localizados, “Anora” é uma beleza de filme e a sua protagonista, que alterna entre a sensualidade demandada pelo contexto no qual está inserida e a austeridade que o mundo incessantemente lhe exige, um encanto difícil de esquecer.
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– Leandro Luz (@leandro_luz) escreve e pesquisa sobre cinema desde 2010. Coordena os projetos de audiovisual do Sesc RJ desde 2019 e exerce atividades de crítica nos podcasts Plano-Sequência e 1 disco, 1 filme.