48ª Mostra SP: “Os Malditos”, de Roberto Minervini, é uma jornada existencial e coletiva nas entranhas do precipício

texto de Leandro Luz

Não dá para afirmar, pelo menos não com tanta convicção, que essa é uma tendência deste ano (até porque estamos falando de um universo de mais de 400 obras), mas a 48ª Mostra tem apresentado filmes bastante contemplativos, muitas das vezes tomados pelo tema da solidão. “Os Malditos / The Damned” (2024) é um deles: uma coprodução italiana, belga e estadunidense ambientada no inverno de 1862 durante a Guerra Civil americana que se importa pouco com a construção de uma trama muito elaborada ou mesmo com o desenvolvimento de personagens no sentido mais clássico da coisa. A sua lógica passa por mostrar a rotina dura de um pequeno grupo de soldados da União em expedição pelos territórios do oeste. O tema e a sua exploração fazem do filme um faroeste que pouco se interessa pelos códigos mais tipicamente reconhecidos do gênero e que mergulha em uma letárgica viagem pelo desconhecido.

Roberto Minervini, vencedor do prêmio de Melhor Diretor no Un Certain Regard do Festival de Cannes 2024 com este “The Damned”, se preocupa mais com a atmosfera na qual os seus soldados estão mergulhados e com o perigo iminente que deixa todos eles em estado de alerta do que em contar uma história tradicional. Nesse sentido, o prêmio em Cannes se justifica, já que o grande diferencial aqui é mesmo o trabalho de direção, atento aos pequenos detalhes e intrigante na maneira como arma toda a ação, se aproximando ou tomando distância quando necessário, imprimindo urgência ou alimentando a contemplação diante da necessidade de cada cena.

Na tentativa de discorrer sobre o grande tema da guerra, Minervini adota um estilo cru, próximo ao documental, com uma abordagem que coloca tanto as imagens como os assuntos debatidos em uma perspectiva contemporânea. Apesar do esmero na recriação de cenários, figurinos e objetos, o filme não se perde na fetichização e na perfumaria – problema frequente deste tipo de cinema. Empreende, ao invés disso, discussões bastante atuais sobre o tempo, a morte, a ideia de nação, entre outros temas suscitados pelas conversas entre os soldados, frequentemente entediados pelo grande “nada” que encontram na maior parte do tempo.

O tempo e a espera são os piores inimigos da trupe. Em uma guerra – quase qualquer guerra – esses dois adversários costumam ser implacáveis. “Os Malditos” não provoca grandes tensões, mas estabelece um processo gradual de derrocada. As personagens fazem de tudo para ocupar o tempo e espantar o tédio: limpam os seus rifles, cozinham a refeição de cada dia, conversam sobre a família que deixaram para trás e a que pretendem construir um dia, discorrem a respeito “do bem e do mal” e chegam até a provocar um debate sobre ética. O marasmo é interrompido pela primeira vez com uma repentina cena de confronto, bastante eficaz no modo como acompanha tudo muito de perto, com a câmera colada nas costas dos nossos “heróis”, que caem um a um. Uma carnificina esperada, a se tratar de um filme de guerra, mas que choca pelo momento que invade a trama.

A bela sequência que abre o filme define o quanto a natureza é um componente que põe tudo em movimento para Minervini. Um plano aberto enquadra três lobos, emoldurados pela floresta, devorando a sua presa. Um ou dois minutos depois, outro plano, dessa vez mais fechado, revela as entranhas do animal, dilacerado no chão selvagem em cima de uma poça de sangue e vísceras. Outro inimigo sempre à espreita é justamente o perigo que a própria natureza convoca. Por outro lado, Minervini também parece encantado com a mesma natureza, não à toa encerra seu filme com um dos homens contemplando a neve que cai linda e implacável em seu rosto. Uma jornada existencial e coletiva nas entranhas do precipício.

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– Leandro Luz (@leandro_luz) escreve e pesquisa sobre cinema desde 2010. Coordena os projetos de audiovisual do Sesc RJ desde 2019 e exerce atividades de crítica nos podcasts Plano-Sequência e 1 disco, 1 filme.

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