texto de Renan Guerra
Recife, 2002. Ana e seu marido, um jovem casal com menos de 30 anos, nem pensava em ter um filho naquele momento, porém um falso alarme de gravidez aflora esse desejo em ambos. Instigados por essa ideia da maternidade / paternidade, ambos entram em uma jornada de tentativas e falhas, de expectativas e frustrações que irão minar este casamento. 2008. Já separados, agora acompanhamos Ana em uma experiência dolorosa de quem tenta entender o que fazer de sua vida e como entender seus sonhos e desejos em meio a tantas desilusões. São nesses dois tempos que se constrói a narrativa de “Dentro do nosso silêncio” (Editora Paralela), livro de estreia de Karine Asth, escritora fluminense radicada há muitos anos em Pernambuco.
Premiado com o Jabuti de melhor romance de entretenimento, o livro de Asth é bem mais que uma narrativa para entreter ou uma leitura leve para passar o tempo, na verdade é um mergulho em uma experiência bastante complexa e que se debruça por sentimentos que nem sempre gostamos de explorar ou expor, como o egoísmo, o rancor e a amargura. A escrita de Asth é realmente leve e fluida, com linguagem simples, porém seu texto nunca é frívolo. Se o texto nos envolve em uma narrativa direta, por outro caminho ele também nos joga em uma construção complexa de personagens, que cria uma protagonista cheia de nuances e que nem sempre se torna agradável. Ana passa por experiências dolorosas e em alguns momentos responde com ações egoístas e bastante questionáveis, porém Asth não a julga, apenas nos apresenta todas essas nuances de forma bastante clara, para que a gente entenda que Ana é inegavelmente humana e falha.
Nesse sentido, é muito interessante como a autora consegue navegar muito bem entre os dois tempos da história, criando uma narrativa instigante e ágil. De todo modo, se sua construção da protagonista Ana é extremamente envolvente, por outro lado a sua construção de Samuel, o marido, é ponto frágil do livro. Quando acompanhamos a narrativa de Ana, é natural que os sentimentos de Samuel fiquem em segundo plano, porém Karine Asth decide criar alguns capítulos que são narrados pela perspectiva de Samuel – e falha na tentativa. Primeiro que a autora não aprofunda essa ideia: são poucos capítulos que tem essa perspectiva e eles surgem já pela metade do livro, criando uma quebra na narrativa. Segundo que esses capítulos soam mais engessados, sem a mesma fluidez. O livro não perderia nada se esses capítulos não existissem. Na realidade, o ponto alto da criação de Asth são suas personagens femininas: Maria, por exemplo, a irmã de Ana, é uma personagem extremamente rica e bem construída que renderia um livro por si só.
Uma pausa: sempre escrevemos no Scream & Yell na primeira pessoa do plural e colocamos aqui uma perspectiva de resenha crítica e não com a pessoalidade de uma crônica, porém peço licença para usar da primeira pessoa do singular neste parágrafo e relatar algo mais pessoal. Eu, o autor deste texto, sou um homem gay de 31 anos, a mesma idade de Ana após sua separação, e não tenho o desejo de ser pai, mas mais que isso, para mim é uma perspectiva distante a ideia fixa de ter um filho biológico, de construir legado sanguíneo, por isso logo de cara achava que o livro de Karine não me convenceria. Fui tapeado. “Dentro do nosso silêncio” me conquistou e me fez me emocionar e me envolver com personagens completamente distantes de mim em diferentes sentidos – de experiências de classe, de vivências emotivas, de perspectivas familiares e afetivas. Karine tem um jeito simples de nos engendrar em sua narrativa e isso me fez de algum modo adentrar o mundo de sua personagem Ana e entender seu desejo e, por consequência, seus erros, seu egoísmo e suas falhas. Enfim, é isso, encerramos aqui o desvio de pronomes, voltamos à programação normal da nossa terceira pessoa do plural.
“Dentro do nosso silêncio” possui algumas fragilidades e tensões de uma escritora em descoberta de sua própria voz, mesmo assim é uma apresentação extremamente interessante da escrita de Karine Asth. Sua escrita nos leva em uma jornada que poderia se tornar piegas e exagerada, mas que acaba sendo rica pela sinceridade de seus personagens, que se mostram de forma compreensível, entre acertos e falhas, algo que possibilita ao leitor ir do choro à alegria.
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava.