entrevista de João Paulo Barreto
Em 1966, em plena ditadura militar, um jovem Geraldo Sarno, aos 28 anos, filmava seu segundo trabalho, o curta-metragem “Auto de Vitória”. O filme trazia uma reflexão sobre as influências da igreja nas decisões políticas e sociais do Brasil ao colocar o diretor, oriundo da cidade de Poções, na Bahia, diante de um cortejo religioso no qual um veículo militar conduz o fêmur do padre José de Anchieta da Basílica de Aparecida para a Catedral da Sé, em São Paulo. A imagem é simbólica. A fé de um país sendo acompanhada por seus fiéis, mas conduzida e manipulada por militares durante a ditadura militar. Após o registro histórico, com as imagens a desenhar aquela ideia de poder atrelado à religião, o filme muda sua face para uma encenação na qual Lúcifer e Santanás discutem o futuro do Brasil. A montagem do texto, baseado na peça “Na Vila de Vitória ou Auto de São Maurício”, escrita pelo próprio padre Anchieta em 1595, reflete a ideia de um país no qual Deus não dita mais qualquer regra, cabendo a demônios traçar as decisões. Nada mais perceptível como um golpe pesado da realidade no nosso Brasil pentecostal que ascendeu de 2016 em diante.
“Auto de Vitória” se encontrava “perdido” e o próprio Geraldo Sarno, que viria a construir uma sólida carreira como cineasta durante as décadas seguintes, não sabia do paradeiro da obra. O diretor de “Viramundo” (1964) e de filmes que refletem exatamente a condição do poder em um país marcado pelo constante êxodo de seus cidadãos em busca de melhores condições de vida e de sua identidade como povo, viria a falecer em 2022 sem ter acesso ao curta. Coube a um acaso e a curiosidade do biógrafo de Geraldo, o jornalista Piero Sbragia, a localização da obra na Cinemateca Brasileira, em São Paulo, que não só ganha exibição na Mostra SP 2024, como abre uma parceria de Sbragia com o evento: “Decidimos fazer, primeiro, a exibição com o curta que estava desaparecido (…). No ano que vem, com a biografia do diretor já lançada pelo Piero, queremos fazer uma homenagem bem maior”, afirmou Renata Almeida, diretora da Mostra, em conversa com o Scream & Yell.
Na entrevista abaixo, Sbragia fala sobre o processo de localização do filme e aprofundamento na obra de Geraldo Sarno. Confira!
“Auto de Vitória” é um filme feito pelo Geraldo Sarno em 1966, dois anos após “Viramundo” (1964), e é curioso observar os ecos dessa temática que ambos abordam percorrerem toda a sua trajetória no cinema. Como você analisa essa conjunção existente em toda a sua filmografia?
Acho que, no fundo, quando encontro esse filme, passo a ter mais certeza ainda de que toda a obra do Geraldo tem um propósito, e mais além de um propósito, a obra do Geraldo tem uma busca. Do primeiro filme, “Viramundo” (1964), até o “Sertânia” (2000), que não foi planejado para ser o último – a ideia era ele fazer mais um filme ainda. Ele queria que seu último filme fosse um projeto baseado no Guimarães Rosa. Mas o fato é que “Auto de Vitória” é um trabalho que não deixa de ser surpreendente nesse sentido, porque é um filme muito ousado em que ele busca adaptar um texto do padre José de Anchieta, que é um texto difícil e muito alegórico. Um texto que, na verdade, está muito mais dentro de um contexto de disputa de poder entre Portugal e Espanha do que, necessariamente, do Brasil, apesar da história se passar aqui. A grande ironia desse filme é que, enquanto ele está filmando a parte teatral da obra, eles descobrem que o suposto fêmur do padre José de Anchieta (suposto, porque, cientificamente, não dá para saber se é, de fato, o fêmur do Anchieta ou não) está vindo para o Brasil. Então, eles param a filmagem ficcional do filme e resolvem acompanhar o cortejo. Imagina naquela época. Tudo aconteceu muito rápido. Você não tinha internet, Whatsapp. Então, eles descobrem que o fêmur iria vir de Roma até Santos. De Santos, ele iria direto para Aparecida, na Basílica. E da Basílica de Aparecida, no interior de São Paulo, ele viria para a capital São Paulo para ficar no pátio do colégio, onde está até hoje. E aí o Geraldo, o Affonso Beato, que fez a fotografia, e o Francisco Ramalho Jr. conversam com o Paulo Emílio (Salles Gomes). Ele era o produtor do filme também, porque a Cinemateca Brasileira é uma das produtoras, junto com o Instituto de Estudos Sociais da USP. É o primeiro filme produzido pela USP, inclusive. Tem esse detalhe. Eles adaptam um tripé e uma câmera em uma caminhonete rural que a Cinemateca tinha. Isso de uma maneira tosca e perigosa. Imagina hoje você subir na caçamba de um carro com um tripé e uma câmera, algo que não faz o menor sentido. E partem de São Paulo até Aparecida. Então, eles encontram o fêmur em Aparecida e resolvem fazer o trajeto de volta de Aparecida até São Paulo pela (Rodovia) Dutra, que na época não se chamava Dutra, mas era a mesma estrada, a antiga Rio-Santos. E aí chegam na capital e se deparam com aquela multidão. A Praça da Sé tomada. Uma coisa gigantesca. Uma dimensão ali para receber aquele fêmur, para saudar aquele fêmur como se fosse uma pessoa. E é muito interessante porque o Geraldo faz questionamentos ali para as pessoas. São questionamentos no curta que tem tudo a ver com a temática dos filmes dele. Porque “Auto de Vitória” é um filme que fala da cultura popular. Ele é um filme que fala da religião e, principalmente, de um olhar político sobre a religião.
Os ecos deixados por “Auto de Vitória” que alcançam até “Sertânia”, que Geraldo lançou em 2020, são bem perceptíveis, também.
Sim. Ele dialoga muito com o “Sertânia” porque a montagem de “Auto de Vitória”, que é do Silvio Renaud, traz aquilo que o Eisenstein chamava de montagem intelectual. O Geraldo está mostrando uma coisa, mas ele está falando outra. Então, enquanto o arcebispo fala, por exemplo, de democracia, o Geraldo e Renaud mostram uma imagem de um tanque de guerra. Quando eles falam de paz, o filme mostra uma imagem da Força Pública, que, depois, deu origem à Polícia Militar. Esse filme tem muitas sutilezas que dialogam demais com a obra do Geraldo. E por incrível que pareça, por mais estranho que possa parecer, a gente descobre que o Geraldo fez um filme inspirado em uma peça do padre José de Anchieta. E o mais bacana é você descobrir o quanto que essa obra está inserida dentro de todo o contexto da filmografia do Geraldo Sarno e de toda uma busca que ele teve enquanto cineasta para ir além da estética. Ele era um cara que fazia cinema, que pensava cinema, e ele queria que as pessoas assistissem aos filmes com esse tipo de pensamento. Que o filme não é meramente uma coisa bonita. O filme é para te provocar. É para te tirar do lugar. O filme é para te fazer parar e pensar. Então, fiquei muito feliz. As poucas pessoas que já assistiram e que falaram comigo, todas amaram o filme (N.E. entrevista feita em 12/10/2024). Confesso que eu tinha até uma certa preocupação em saber como que iria ser a recepção do filme, principalmente na Mostra, porque é um filme diferente. É um filme que tem quase 60 anos. É um curta. É um filme que tem uma estética de cinema direto na primeira metade, depois ele tem uma estética completamente diferente. Diria até subversiva. E o mais bacana de tudo é que o Geraldo sequer acreditava no texto do Anchieta. Eu conversei com o Celso Nunes, o diretor de teatro. Ele mora em Salvador e está com 83 ou 84 anos. Não vai poder vir para a Mostra. Ele disse para mim que foi a primeira vez na vida dele, a primeira e única em que ele fez uma peça de teatro na qual o diretor não acreditava no texto. Ele disse: “O Geraldo pensava completamente o contrário do Anchieta.” Então, você imagina o caos que foi para essa trupe de atores iniciantes da USP. Como foi fazer esse filme com um garoto. O Geraldo era um garoto na época. Era o segundo filme dele. Ele tinha menos de 30 anos…
Como foi o processo de encontrar na Cinemateca o filme que se encontrava perdido?
Quero ser honesto: foi completamente por acaso. Eu estava fazendo uma reportagem na Cinemateca Brasileira na época, quando eu trabalhava para a TV Globo. Tinha uma pauta sobre aquele projeto da Cinemateca de digitalizar e restaurar os filmes de nitrato. Conversando com a Gabriela Souza Queiroz, que é a diretora técnica da Cinemateca, perguntei a ela sobre o curta. Eu lhe disse que vinha pesquisando algumas coisas do Geraldo Sarno no banco de dados da Cinemateca, e encontrei algumas fotografias e até um roteiro desse filme, “Auto de Vitória”. E expliquei a ela que era um filme que o Geraldo estava procurando, mas que ele não sabia onde estava. Perguntei a ela como poderia ter acesso ao material, pois procurei no sistema da Cinemateca e não achei. Ela me explicou que havia a possibilidade de o filme estar em um depósito ao qual eu não teria acesso pela busca. Ela usou um sistema interno da Cinemateca para fazer a busca do filme, mas não dava para dizer se ele estava na leva de filmes que sobreviveram à enchente, mas provavelmente ele está no galpão em que ficam os filmes que a gente não sabe a qualidade. São filmes que ainda não passaram por um trabalho de restauro. E para minha surpresa, ela faz uma pesquisa ali na hora, e encontra o filme (no sistema). Isso foi em maio ou junho de 2023! Então começa todo um processo, uma longa espera. Primeiro era preciso localizar o filme. Uma vez localizado, era necessário aguardar que os técnicos vissem o real estado do filme. Foram meses até ter a resposta: “O filme não está 100% perfeito, tem algumas imperfeições, sujeiras e tal, mas é possível digitalizar”. E aí eu começo a acompanhar um pouco mais de perto o processo, que foi 100% feito e custeado pela Cinemateca, uma vez que ela é a produtora do filme. O direito autoral da obra também é da Cinemateca. E o mais bacana é que os técnicos da Cinemateca conseguiram me dizer que essa cópia foi depositada na Cinemateca em dezembro de 1981 pelo Francisco Ramalho Jr., que é o produtor do filme. Então, não é a cópia original do filme. É uma cópia da cópia original e que foi exibida pouquíssimas vezes, no máximo três ou quatro vezes. Dá para saber disse o através das perfurações do negativo. Os técnicos da Cinemateca me mostraram. É possível a gente perceber que esse filme foi exibido poucas vezes. Isso vai de encontro ao que eu descobri depois, pesquisando nos jornais da época. Esse filme teve apenas duas exibições públicas. Uma delas foi na segunda edição do Festival de Brasília, que na época ainda era chamado de Semana do Cinema Brasileiro, em 1966, quando concorreu com “Bethânia Bem de Perto”, primeiro filme do Eduardo Escorel, co-dirigido pelo Julio Bressane. Depois disso, ele foi exibido na Cinemateca do MAM, em um evento fechado. Então, esse filme nunca foi exibido no circuito comercial de cinema.
Em sua pesquisa para a biografia do Geraldo, o que você encontrou sobre a relação dele com “Auto de Vitória”?
O Geraldo tinha uma certa preocupação com esse filme. Encontrei cartas escritas pelo Geraldo para o Paulo Emílio (Salles Gomes) perguntando como tinha sido a recepção ao filme. Então, ele tinha muita preocupação, imagino eu, até por causa da ditadura. Porque o filme é de 1966, e ele fica pronto um ou dois anos antes do AI-5. Então, quando ele está no Nordeste fazendo filmes com o Thomas Farkas, esse filme está pronto aqui em São Paulo. E ele sem saber qual foi o destino do filme. Acho que a grande preocupação do Geraldo, pelo que entendi das cartas ali, era para saber se ele poderia sofrer algum tipo de represália. Porque ele estava longe de São Paulo. Ele estava no Nordeste filmando com a Caravana Farkas. Então, eu acho que essa descoberta do filme ficou muito interessante nesse sentido, porque a Cinemateca corrigiu a imagem. Está muito bonita. O som está muito bonito. A trilha sonora original é do Rogério Duprat. A fotografia é do Affonso Beato – acho que é o terceiro ou quarto filme do Beato. Ele ainda bem jovem, com vinte e poucos anos. Esse filme tem uma super equipe por trás. Tem o Sérgio Muniz fazendo o som, o Sylvio Renoldi na montagem. Esse trabalho de restauração, dessa nova cópia digital, reafirma essa força que o Geraldo Sarno tem. Porque é um filme de 1966 que continua super atual. Ele discute coisas assim como o “Viramundo”. É um filme que discute coisas que estão aí ainda. As igrejas continuam tendo poder no Brasil. As igrejas continuam, de certa maneira, regendo a vida pública dos brasileiros. As igrejas estão cada vez mais envolvidas com a política. E eu acho que “Auto de Vitória” trata um pouco disso e de uma maneira muito irônica. Porque, na parte ficcional, a gente tem ali Satanás e Lúcifer debatendo o futuro do Brasil. Deus foi alijado desse debate (risos). Então, está na mão do inferno decidir se a gente tem futuro, se a gente tem solução ou não. Então, isso é fantástico.
No processo de escrita do seu livro lançado em 2020, “Novas Fronteiras do Documentário: Entre a Factualidade e a Ficcionalidade”, você chegou a conversar com o Geraldo sobre “Auto de Vitória”?
Não. Cito o filme em uma das perguntas, mas naquela época eu não tinha visto o filme ainda. E não gosto de perguntar sobre obras, livros e filmes que eu não conheço. Eu até citei “O Auto de Vitória”, mas, assim, superficialmente. Ele também não se aprofundou. Então, é uma coisa que eu tenho… Não diria um arrependimento, porque descobri o filme só agora. Não tinha acesso a ele na época. Mas diria que no dia que eu reencontrar o Geraldo, vou perguntar isso a ele. Por mais que eu encontre entrevistas dele na época falando do filme, e eu encontrei várias, eu morro de vontade de saber o que ele pensaria hoje sobre esse filme, sobre essa nova exibição. Porque era algo que ele estava atrás. Conversei com o pessoal da UESB (Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia) sobre essas mensagens do Geraldo. A Rayssa Coelho, que é uma das pessoas que montou o site Linguagem do Cinema, tem várias mensagens trocadas com o Geraldo e ele constantemente perguntava para ela sobre o paradeiro do filme. O Euclides (Santos Mendes) que também é da UESB, comentou que o Geraldo tinha uma pista de que esse filme pudesse estar na Cinemateca. Mas era só uma pista. Ele também poderia não estar. Porque, publicamente, ninguém conseguia saber que o filme estava lá. Eu descobri por acaso porque eu estava lá dentro, conversando com a Gabriela, que é a diretora técnica, e ela teve um acesso mais rápido. Então, é um pouco isso. Acho que o êxodo também é um tema presente na obra dele, sem sombra de dúvida. Nos livros dele, o Geraldo trata disso diretamente. Na série, “Sertão de Dentro”, que ele fez antes do “Sertânia” e ainda está inédita, também.
Desde “Viramundo”, Geraldo Sarno criou um foco em sua carreira que se voltou para uma reflexão acerca do êxodo do povo brasileiro e todas as mudanças políticas e sociais que o Brasil viveu a partir da segunda metade do século XX. Para você, como esse peso da análise do êxodo social do brasileiro simboliza no trabalho que ele deixou?
Fazendo uma análise muito, eu diria, superficial do Brasil, acho que a gente está vivendo hoje, em 2024, um processo de restauro do país. Não acho que esses fenômenos sociais e políticos sejam inéditos. Já tivemos marcha de integralistas em São Paulo, e que apanharam de rebeldes. Nada desses fenômenos de Bolsonaro, Marçal, nada disso me assusta. Porque eu acho que são movimentos cíclicos. Mas o que me parece e que é cada vez mais evidente, cada vez na nossa cara, é que o Brasil é um país que nasceu da violência. O Brasil nasceu, basicamente e simbolicamente, do estupro de mulheres indígenas cometido pelo homem branco europeu. E esse estupro dá origem ao roubo de terra, dá origem a roubo de propriedades, a posse de objetos, ao tráfico de pessoas, que começa com os indígenas e, depois, com os negros escravizados. E vai culminar com outras violências, como a intolerância religiosa, falta de moradia, e tudo isso é contemplado na obra de Geraldo. O Geraldo discute essas violências todas e que, de certa maneira, representam esses êxodos que vivemos no Brasil. “Auto de Vitória” está dentro desse contexto. “Sertânia” está dentro desse contexto, que é o cangaceiro moribundo que não consegue reagir a essas coisas que ele sofre na vida, quando ele é separado da mãe e depois quando ele traído pelo amigo. Então, a obra toda de Geraldo fala desses grandes êxodos no Brasil. A gente continua em êxodo. Nós todos somos refugiados dentro do nosso país. Me lembro de um documentário da Eliane Caffé, “Era o Hotel Cambridge”, que tem uma pessoa que pergunta para alguém que está em situação de refúgio no Brasil porque ele é um refugiado no Brasil. Ele responde dizendo que, realmente, saiu da Síria refugiado e veio para cá. Mas aí ele pergunta ao brasileiro: “Mas e você que é refugiado dentro do seu próprio país?” Acho que é um pouco isso. A gente tem 80 mil pessoas aqui em São Paulo em situação de rua. Eu tenho ido pra BH toda semana por causa do meu doutorado e é impressionante a quantidade de pessoas na rua ali no entorno da rodoviária de Belo Horizonte. Então, a gente tem uma massa de pessoas no Brasil que não tem sequer moradia. E nós estamos em 2024. Então, a gente tem ali só 3% da população com ensino. Das pessoas com ensino, só uma negra. Sendo que os negros são mais da metade da população. E onde estão os negros, por exemplo? Estão nas penitenciárias. 80% da população encarcerada no Brasil é negra. Olha quantos êxodos que a gente tem e a obra de Geraldo, de certa maneira, atravessa tudo isso.
– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde, de Salvador. A foto que abre o texto é de Leo Lara.