texto de Renan Guerra
Antonio Roberto Lira de França, conhecido pela alcunha de Pernalonga, foi uma figura reconhecida no teatro pernambucano dos anos 1970 e 1980, tornando-se nome famoso em Recife e Olinda, seja nas altas rodas de cultura ou nos bares da boêmia. Ainda adolescente, com os estudos incompletos, o jovem mestiço e de trejeitos afeminados se interessou pelo teatro e começou a frequentar os encontros de grupos amadores e experimentais. Logo Pernalonga faria parte do seminal Vivencial Diversiones, histórico grupo de teatro pernambucano que possibilitou experimentações disruptivas que encontravam seu escoamento a partir das vivências e experiências diversas de seus integrantes – o grupo, por exemplo, é uma das inspirações de Hilton Lacerda para o excelente filme “Tatuagem” (2013).
Artista corajoso, assumidamente bissexual, que viveu com o HIV durante muitos anos, Pernalonga é um personagem rico e cheio de nuances, potencialidades que são exploradas pelo jornalista Márcio Bastos no livro “Pernalonga – Uma sinfonia inacabada” (2023), lançado pela Cepe Editora. Parte da Coleção Perfis, projeto da Cepe que revisita a biografia de personalidades importantes da cultura pernambucana, o livro de Bastos enfrenta alguns percalços. Primeiro, seu biografado já é falecido, então não há sua perspectiva nos fatos narrados; segundo, Pernalonga era figura do teatro experimental, então se já temos poucos registros sobre o teatro formal, o que dirá da memória de projetos mais à margem; terceiro, Pernalonga era homem bissexual, mestiço, afeminado, que desde o final dos anos 1980 viveu abertamente falando sobre sua sorologia de HIV positivo, então sabemos bem que há uma dificuldade de registros desse tipo de personagem e quando há o registro, não há o cuidado de se preservar essas narrativas.
Dito isso, Márcio Bastos constrói aqui um resgate de toda a história de Pernalonga, com seus percalços enquanto artista, com suas andanças e experimentações, com seus movimentos e sua efervescente criatividade. Em primeiro plano, o jornalista registra para as novas gerações a história, em detalhes, de uma figura fundamental para a movimentação cultural de Pernambuco nas décadas de 1970 e 1980, apontando assim um novo olhar para todo um movimento artístico que foi fundamental para as artes locais. Em segundo plano, Bastos ajuda na criação de memórias LGBTQIA+, possibilitando um olhar complexo e sincero sobre um personagem que é único e verdadeiro, mas que em sua unicidade também nos reconecta com uma série de personagens que existem em nosso imaginário, mas que tiveram suas histórias apagadas. Pense aí: quase toda cidade tem suas “bichas” históricas, aquelas que movimentaram e causaram e se tornaram lendas, porém muitas vezes as histórias desses personagens são contadas a partir de vieses caricaturais, que colocam esses personagens no espaço de excentricidade, de galhofa, apagando as nuances, os desejos e a ousadia dessas personas.
“Pernalonga – Uma sinfonia inacabada” nos leva em uma viagem por Olinda e Recife, tudo pela perspectiva de seu protagonista – pode o leitor nunca ter pisado nessas cidades, mas ao terminar o livro de Bastos temos a sensação de conhecer todas as ruas e vielas, todos os botequins e todos os palcos por onde Pernalonga transitou. Tudo isso só é possível pelo trabalho minucioso de Márcio Bastos, que reúne uma série de entrevistas e de acervo de imprensa para construir uma narrativa que flui e que nos coloca nesse universo de liberdade, experimentação e ousadia pelo qual Pernalonga habitava. Com isso, o livro de Bastos apenas nos relembra a importância de recontarmos nossas histórias, de preservamos a memória de figuras pioneiras – muitas vezes falamos de relembrar o passado para não repeti-lo, porém é essencial também que olhemos para os exemplos positivos do passado, para que possamos relembrar toda a coragem e ousadia daqueles que vieram antes.
Ao terminar a leitura de “Pernalonga – Uma sinfonia inacabada” o que nos resta é o desejo de poder sentar numa mesa de bar com Pernalonga, pedir uma cerveja gelada, e poder ouvir todas essas histórias e memórias contadas por ele próprio.
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava.