texto de Davi Caro
Por mais leitores dedicados de histórias em quadrinhos que possam existir no Brasil, é provável que poucos conheçam as obras da nona arte realizadas por nossos vizinhos argentinos – à exceção, claro, das incríveis tiras da personagem Mafalda, criada pelo lendário Quino. Um olhar mais atento, porém, mostra que a produção de narrativas sequenciais realizadas por nossos hermanos carregam muito das mesmas mensagens politizadas difundidas, dadas as devidas proporções e de modo mais lúdico, pela icônica garotinha de laço no cabelo. Mais do que isso: explorar o universo dos quadrinhos na Argentina revela algumas das mais contundentes, intrigantes e importantes histórias já publicadas no gênero – em meio às quais “O Eternauta” (“El Eternauta”, originalmente) é merecedor de destaque.
Publicada originalmente na revista semanal Hora Cero entre 1957 e 1959, a narrativa de ficção científica criada por Héctor Germán Oesterheld e ilustrada por Francisco Solano López chega ao Brasil pela primeira vez em muito tempo através de uma caprichadíssima edição de luxo da editora Pipoca & Nanquim (que atualmente está em pré-venda, com lançamento oficial previsto para este mesmo Outubro de 2024). Com uma adaptação em live action chegando às telas da Netflix já em 2025 (mais sobre isso adiante), o momento é mais propício do que nunca para (re)descobrir, (re)analisar e (re)apreciar uma história que se provou influente e que se utilizou de elementos narrativos hoje tidos como comuns, e que, no entanto, foram mais do que inovadores em sua época – e que não perderam nada em seu apelo e minúcia nos dias atuais, inclusive.
A história se inicia no fim dos anos de 1950, quando um roteirista de quadrinhos (que o exercício de metalinguagem faz o leitor crer se tratar do próprio Oesterheld) se depara com um indivíduo que se materializa em sua casa. Se identificando como Juan Salvo, o Eternauta, o personagem passa a relatar os eventos que se sucederam em sua realidade – que nada mais é do que o futuro não muito distante, para seu interlocutor – com o roteirista servindo de ouvinte. Juan então detalha o momento em que, de dentro de sua casa no bairro de Vicente López, na capital Buenos Aires, uma estranha neve brilhante passou a cair, sem previsão ou aviso, do céu, chamando a atenção de sua esposa e filha, bem como dos três amigos que recepcionava. Não demora muito para que Juan e seus companheiros descubram que a tal neve é letal, sendo capaz de matar indivíduos a partir de um simples contato. Conforme os corpos começam a aparecer nas ruas através das janelas da casa, e à medida que o pânico luta para instalar-se, o engenhoso grupo de amigos confecciona um traje isolante, para que Salvo possa se arriscar porta afora em busca de mantimentos e sobreviventes.
Sua busca não tarda em trazer novas informações sobre os misteriosos acontecimentos, e o personagem (bem como o leitor) se depara com uma massiva invasão alienígena. Conseguindo se deslocar por meio de um caminhão, os companheiros de Juan também tomam contato com outros grupos de sobreviventes, que se unem ao exército com o objetivo de resistir aos invasores. Porém, ao se depararem com seus primeiros oponentes – escaravelhos gigantes nomeados por Oesterheld como “Cascarudos”, no original – os remanescentes descobrem que as criaturas são na verdade controladas à distância por outros, como uma espécie escravizada e utilizada como ferramenta para a invasão. Conforme novas descobertas são feitas e a luta pela retomada de controle da capital federal se transforma em uma luta contra o tempo, novas e cruéis reflexões são trazidas à tona, e o espírito de Salvo, bem como o de seus companheiros combatentes, é desafiado de maneiras surpreendentes e dramáticas.
É imprescindível salientar o talento primoroso de Oesterheld como roteirista em “O Eternauta”. Mesmo que levando em consideração a periodicidade com a qual a história foi publicada originalmente, o ritmo do enredo é cativante e tenso, e a leitura não perde em sua cadência mesmo quando lida no formato encardernado. Além disso, o uso de metáforas e alegorias dentro da estrutura narrativa também elucida muitos dos pontos de vista sociopolíticos defendidos pelo autor, de modo muito parecido com o visto em outras grandes obras da nona arte – como “Persépolis”, de Marjane Satrapi, ou “Maus”, de Art Spiegelman – porém com muitos anos de antecedência. Já o trabalho de ilustração de Francisco Solano López é um espetáculo à parte: fazendo uso de um estilo hiperrealista, a arte ajuda a embalar o excelente enredo usando muitos dos estilos tão particulares à ficção científica da época, ao mesmo tempo em que os diferentes pontos da cidade de Buenos Aires são retratados de forma fidedigna e detalhada: qualquer um que se aventure a descobrir a capital argentina após a leitura vai ser capaz de identificar várias das características representadas aqui (dos ônibus estilizados às calçadas quadriculadas, dos postes de iluminação às estátuas e praças espalhadas pelos principais bairros).
Após a conclusão da publicação original, problemas de caráter financeiro acabaram por trazer à falência a Editorial Frontera, companhia fundada por Oesterheld, o que fez com que muitos dos direitos de personagem acabassem tendo de ser vendidos pelo autor. As alegorias politizadas de “O Eternauta”, porém, seriam só o começo de uma série de trabalhos a trazer um viés mais politicamente consciente da parte do escritor, que passou a ser visado (assim como Solano López e muitos de seus colegas) pelos militares que, ao tomarem o poder em 1976, declararam Héctor um inimigo da nação e um disruptor dos ideais nacionalistas. Já no ano seguinte, Oesterheld se tornaria um dos muitos sequestrados, assassinados e desaparecidos da ditadura argentina que durou até 1983, juntamente com suas quatro filhas (quase todas grávidas) e três de seus genros. Francisco Solano López se radicou com a família na Espanha, o que garantiu que não seria mais um vitimado; o artista faleceu aos 82 anos, já de volta à sua cidade natal.
“O Eternauta” recebeu quase tantas republicações (muitas delas não-oficiais) quanto sequências. De fato, logo em 1969, Oesterheld se uniria ao desenhista uruguaio Alberto Breccia para criar uma nova versão, muito mais incisiva em seu caráter político, da história original (inclusive com referências diretas ao caráter opressivo das interações entre as superpotências planetárias e os países da América Latina). A história original teve seguimento em “O Eternauta II” (1976), que contou com a dupla responsável pela primeira edição e que foi concluída com Oesterheld já vivendo de modo clandestino e evitando a repressão cívico-militar. Todas as publicações seguintes – à partir de “El Eternauta: Tercera Parte” (1983) – foram realizados sem a participação efetiva de Oesterheld ou Solano López. Tais sequências passaram, em grande parte, longe de serem publicadas no Brasil, apesar de não serem essenciais para a apreciação da narrativa inicial. Já a história original ganhou lançamento oficial pelas mãos da Editora Martins Fontes em 2011, e o remake chegou ao público via Comix Zone em 2019.
Mais do que um clássico das histórias em quadrinhos, “O Eternauta” se transformou em um ícone bastante associado à luta contra a repressão e, anos mais tarde, foi adotado por organizações peronistas e kirchneristas (ao ponto de, de modo um tanto controverso, estes fusionarem a figura de Juan Salvo à do então presidente da Argentina Néstor Kirchner, criando um personagem nomeado “El Nestornauta”). Após anos a redemocratização, já na década de 1980, a história foi adicionada ao currículo escolar de leituras, com direito à distribuição gratuita de exemplares; porém, com a eleição de Mauricio Macri, em 2012, a história foi suspensa da grade de obras recomendadas, com seu “cárater doutrinador” sendo utilizado como uma (muito furada) justificativa.
Tais esforços, no entanto, não diminuíram o impacto e o apelo intergeracional da obra da dupla Oesterheld-Solano López: em 2022, a Netflix anunciou a adaptação da história para uma minissérie, programada para lançamento em 2025 e com o ilustre Ricardo Darín no papel principal. As expectativas certamente são altas, mesmo com a surpreendente decisão de situar o enredo nos dias atuais, ao contrário dos anos 50/60. A julgar pela presença da figura do protagonista do quadrinho por toda a Argentina, é justo esperar que a produção faça jus ao objetivo original da dupla criativa responsável por sua concepção. E também é animador imaginar que o enredo conquiste mais entusiastas por aqui também: “O único herói válido é o herói coletivo; nunca o individual”, escreveu Héctor Oesterheld no prefácio à sua edição original. Que a riqueza de uma das maiores e melhores obras da história da nona arte cative mais e mais pessoas, e faça aflorar o sentimento de pertencimento cultural do qual, afinal, somente aqueles conhecedores do espírito coletivo são capazes de plenamente desfrutar.
– Davi Caro é professor, tradutor, músico, escritor e estudante de Jornalismo. Leia outros textos de Davi aqui.