entrevista de Bruno Lisboa
Intrigante, provocativa e não-convencional, a banda Displicina chega ao seu primeiro disco, “As Núpcias Ósseas” (2024), após dois EPs lançados em 2023 (“Smells Like 2013 Spirit” e “Os bones do ofício (que Mário)”) apostando na junção de elementos ligados ao experimentalismo, ao noise, ao post-punk e ao avant-garde, criando um som denso, dissonante e atmosférico cujas letras são carregadas de referências à cultura pop, ao universo do cinema e da literatura.
Capitaneado pelo jornalista, produtor, escritor, curador e pesquisador Alex Antunes e pelo também produtor e musicista Fernando Bones ao lado de Giovanna Mota, Itamar Alves e Lola James, “As Núpcias Ósseas” (2024) conta ainda com as participações de Jorge Pescara (baixo), Lello Bezerra (guitar loop), Akira S (programações), Alexandre Diniz (bateria) e os vocais de Luciana Mancini e Lorenzo Sevieri além o dramaturgo Leo Lama – e intervenções sampleadas de Joseph Campbell, John Balance…
Espécie de álbum conceitual em que o tema da morte – e dos estados entre a vida e a morte – povoa as letras, em “As Núpcias Ósseas” o grupo segue mantendo em voga os pilares de sua musicalidade torta unindo “esquisitices sonoras + grooves noiados”. Na conversa abaixo, Alex Antunes e Fernando Bones falam das origens do projeto, o processo de formação do grupo, o processo de composição e gravação do disco de estreia, intenções artísticas, referências culturais, participações especiais, planos futuros e mais. Confira!
Umas das coisas mais interessantes em relação a banda é o nome, genial, pois ele consegue transmitir a essência displicente do grupo. Como vocês chegaram a ele?
Fernando Bones: Quando as conversas sobre a banda começaram, o Alex trouxe uma proposta de capa pro primeiro single (que nem existia ainda) escrito “displicina” e eu falei: “Peraí, Displicina tem que ser o nome da banda, não do single! É o melhor nome de banda do mundo!”. A partir daí surgiu o conceito que encapsula totalmente a alma do projeto:
“O termo displicina — do latim: disciplina + displicentia — descreve um Fripp lesado (como aliás essa parceria atual dele com a Toyah), ou a divergência de método entre Cale (o severo) e Reed (o espontaneísta) finalmente integrada” (JUNG, C.G.)
Alex Antunes: O Carlos Castaneda chama de “loucura controlada” a atitude que consiste em reconhecer o ilusório, o arbitrário e a vacuidade de todas as coisas e, ao mesmo tempo, se manter em estado de presença e de atenção, e não de desprezo ou desespero. É uma espécie de “embuste ao contrário”, ou “zumba niilismo”. A arte, a entrega ao fluxo dionisíaco, tem algo de paradoxal também: para sermos tocados por ele (e não tocá-lo, porque nós é que somos o instrumento), temos que experimentar ao mesmo tempo soltura e concentração. Então veio essa coisa trickster de “disciplina + displicência”.
Outro caráter que chama atenção, de imediato, é a formação do grupo. Um olhar atento à ficha técnica permite perceber que cada um trouxe elementos distintos que, quando somados, criaram uma música de caráter indescritível e estranha (no bom sentido da palavra). Como se deu a aproximação de vocês e quais os elementos foram fundamentais para que a química entre vocês acontecesse?
Fernando Bones: A aproximação se deu basicamente pelo grupo Death Disco Machine que o Alex mantém no Facebook e é o grupo de (e não só de) música mais legal que se tem notícia. Um oásis de gente esquisita, inteligente, interessante e, mais importante, que pensa de forma não-linear/binária e não se leva a sério. A galera do fundão mais nerd de todos os tempos!
Alex Antunes: O meu trabalho anterior mais conhecido, o Akira S & As Garotas Que Erraram (a notar que fui eu que criei o nome, e me chamei de “as garotas”, visto que éramos um duo, e o Akira era o Akira 😀 ), tinha esse fundamento da combinação do groove e do canto falado, no limite do spoken word. O Death Disco Machine é o nome do grupo do Facebook, mas acabou também por nomear um coletivo musical. Para mim, o Displicina converge mais ainda nessas estéticas e éticas de produção. No tempo do Akira S, havia uma divisão muito clara entre as “diretorias”: Akira e a música, eu e as letras. Ao trabalhar ao longo dos anos como produtor, inclusive no disco do Death Disco Machine, acabei por encontrar o Bones, que é um baixista/compositor que também é letrista e vocalista, o que gera uma dinâmica bem legal. Os outros membros do grupo aparecem em atividades variadas – a Giovanna, especificamente, cuida das artes visuais.
“As Núpcias Ósseas” é o primeiro álbum cheio do grupo. Como se deu o processo de criação do álbum e de que forma o novo repertório dialoga com os dois EPs anteriores?
Fernando Bones: O álbum foi bem mais maturado que os lançamentos anteriores. O primeiro EP ficou pronto em menos de um mês, fruto da enorme descarga de energia criativa acumulada. Depois, já começamos a pensar no que viria a ser “As Núpcias Ósseas”, mas algumas dificuldades pessoais impuseram um ritmo mais lento. O que acabou se mostrando uma coisa boa, pois o conceito se solidificou cada vez mais e o trabalho pode terminar mais consistente. Coagula mais a proposta estética: esquisitices sonoras + grooves noiados (ou: “um pouco de droga e um pouco de salada”).
Alex Antunes: O disco cheio começou a se formar em torno de um conceito que conectasse as músicas “ganchudas” e as intervenções mais sinistras. Bones já escrevia músicas com essa característica: letras inquietantes em música dançante. “Almoço nu” já existia. “Os bones do ofício (Que Mário)” surgiu inspirada no tema morte (que já estava presente na vinheta introdutória – e essa veio da minha gaveta de esboços). O título “As Núpcias Ósseas” ecoa o título do livro “As Núpcias Alquímicas” (de Christian Rozenkreuz, 1459), que trata da união de opostos. O “ósseo” já estava nos codinomes dos membros, todos citando “bones”, ossos, inclusive o codinome do Bones que se chama Bones mesmo, e que portanto é o Bonesbones. E a Rubedo Discos, do Bones, também já entregava desde antes o interesse dele em alquimia (rubedo é o estado alquímico final).
Musicalmente o disco une elementos que vão do rock industrial ao spoken word, de baixos estridentes / funkeados ao uso de colagens / samples. Quais são as referências musicais que nortearam a criação do universo sonoro da Displicina?
Alex Antunes: Há uma conexão com o pós-punk mais experimental, onde conviveram influências que vinham do progressivo (igualmente do prog mais experimental, e não dos medalhões), da eletrônica, da black music (punk funk), algo do jazz (a no wave), e um componente que então era novo, o da “música industrial” (que vinha de bandas inglesas herdeiras das vanguardas conceituais, como Throbbing Gristle e Cabaret Voltaire). Então eu penso em grupos como o Shriekback do começo (grande inspiração em alternar grooves ganchudos e climas esquisitos), Tuxedomoon, Clock DVA do começo, e outros grupos pós-punk mais obscuros. Outra referência forte para mim é a spoken word com bases musicais, e as nossas vozes ainda dialogam com fragmentos falados de gente como Joseph Campbell, Laurie Anderson, Leonard Cohen num documentário sobre a morte para os tibetanos…
Fernando Bones: O fio condutor principal do universo sonoro do Displicina é, sem dúvida, o pós-punk. Mas o pós-punk é, ele mesmo, uma infinidade de coisas e é difícil elencar pontos focais muito distintos. Do meu ponto de vista, nossa identidade vem muito do equilíbrio entre a mente ultra-intelectualizada do Alex e sua abordagem caótico-dadaísta picotadora/ colecionadora/ montadora de samples e a minha, altamente bagaceira e orientada pelo groove em primeiro plano e uma lógica mais “pop”. Daí você vai ter músicas que vão samplear desde falas do Tarkovsky a sopros de “Careless Whisper”, como se fosse a coisa mais normal do mundo, haha…
As letras rendem um capítulo à parte, pois o álbum tem em si uma carga conceitual (em ode à morte) e é repleto de referências literárias, cinematográficas e musicais. Quem foram os artistas que fizeram a cabeça do grupo quanto a este quesito?
Alex Antunes Gosto de artistas que foram filhotes das vanguardas do século passado. Artistas que estão interessados em todas as linguagens, incluindo, claro, literatura, cinema, temas mágicos e filosóficos. No caso deste disco, parece que o cinema falou forte. Além dos pós-punk citados, minha tríade de mentores musicais é Robert Fripp – Miles Davis – John Cale.
Fernando Bones: Talvez o maior influenciador, mesmo que indireto, seja William S. Burroughs e o conceito de “o operador”: uma figura, geralmente oculta, que exerce influência sobre indivíduos e os grupos. Esse conceito está presente na cut-up technique, forma experimental de escrita e de gravação criada por ele e Brion Gysin, cortando um texto em pedaços e reorganizando aleatoriamente para revelar significados ocultos/inconscientes. O Burroughs falava em desistir conscientemente do controle da sua escrita e “entregar a um operador oculto” o resultado. Durante a composição do álbum, “o operador” esteve presente, tanto na criação das letras, como na própria “Almoço nu”, cujo título é um dos grandes livros de Burroughs, mas no processo como um todo. Em vários momentos nossas escolhas foram baseadas em “ações” do operador; frases como “o operador proverá” aparecem em várias das conversas que tivemos durante o processo de produção.
Para além do grupo, “As Núpcias Ósseas” é repleto de participações especais. Como se deu o convite para os participantes e quais as contribuições eles trouxeram para o resultado final?
Alex Antunes: O baixo do Pescara, um fretless com cordas duplas, vem das sessões do disco anterior do Death Disco Machine, em que eu estava focado em colaborações com vários baixistas: Pescara, Fernando Savaglia, Du Moreira, Rodrigo Gobbet, Akira S no stick. Isso foi antes do trabalho com o Bones. Funcionou bem para o clima intrigante da vinheta de abertura.
A programação do Akira vem das profundezas do tempo, dos arquivos do Akira S & As Garotas Que Erraram. Sempre fui obcecado com esse timbre (era uma peça única, que foi picada nas vinhetas atuais). Salvo engano, essa peça só foi tocada ao vivo uma vez, como introdução da participação da banda num show em estádio da Rádio Fluminense, a Maldita, ainda na década de 80.
O loop de guitarra do Lello Bezerra é de uma performance que ele fez com um dançarino, e postou o trecho nas redes. Achei que sustentava bem o clima aflitivo que dá base para o spoken word (baseado numa postagem) do dramaturgo Leo Lama. Leo gravou seu texto a pedido.
A Luciana é a voz e o texto de abertura também do DDM, cujas vinhetas abordam muito o feminino. E tem um sample da voz dela no disco de Lelo Nazário + MARV (MARV é um quarteto com a minha participação), o “Ressíntese”. Quando pensamos em inserir um “rap” (uma passagem em spoken word) em “Almoço Nu”, pedir para ela dizer foi orgânico.
Outra participação vocal central é a do Airton S., do Plastique Noir. O Airton posta análises de assuntos mágicos, de que ele é um estudioso aprofundado. A ideia de usar suas falas sobre Oppenheimer e a destruição mortal veio junto com o conceito do disco.
Fernando Bones: Nosso amigo, o fotógrafo Lorenzo Sevieri, foi uma ideia do Itamar Alves para a voz em italiano: o texto foi baseado numa letra em inglês dos inícios do grupo Tuxedomoon, nunca gravada em estúdio, em homenagem a Pasolini – é uma letra sobre relações gay masculinas. A letra foi traduzida por Itamar, reescrita por Alex e depois retraduzida para o italiano.
O Alexandre Diniz é baterista da RU NA, banda da qual eu produzi recentemente o primeiro EP, “Heliades”, de onde tirei o sample que se encaixou como uma luva numa linha de baixo minha de 2006 (!).
São diferentes backgrounds e intenções envolvidos, mas nos parece que o disco absorveu e digeriu de uma maneira bem orgânica.
Num mundo no qual as pessoas (e porque não dizer os artistas) almejam estrategicamente se encaixar ou fazer parte de um determinado grupo como vocês descreveriam a música da Displicina? E ainda: quais as intenções vocês alimentam para com o novo disco?
Fernando Bones: Acho que a música do Displicina pode ser descrita como “e se George Clinton e Stockhausen tivessem um filho que fumasse crack?”. É o mais próximo que eu consigo imaginar de uma definição, haha… Mas mais do que definições, acho que o nosso intuito principal é fazer música que seja densa, mas ao mesmo tempo divertida e intrigante, fora da lógica imediatista/pornográfica do mundo das redes. O Alex disse certa vez: “eu diria que tem algo acontecendo no mundo e que estamos caminhando na contramão” e é bem por aí. E acaba que as intenções com o disco se confundem com essa ideia: abrir um buraco na “realidade compartilhada” para que outras formas de ver a vida (e a morte) possam passar.
Alex Antunes: Acho que é fazer precisamente o trajeto oposto de “se encaixar”: o que precisa ser dito raramente é o que o público – e o mundo – acha que precisa. É algo que o mundo – e o público – não reconhecem, porque não traz o conforto das coisas conhecidas. Quer dizer, claro que o groove é conhecido, mas por que não o groove como veículo de ideias inquietantes? O Miles definiu o seu disco mais provocativo, o “On The Corner” (1972), como um choque entre Stockhausen e Sly Stone – assim como o Duran Duran queria ser a junção de Sex Pistols com Chic – que por seu turno, queria ser funk com Roxy Music. E o Akira S queria ser Duran Duran com os discotronics do Fripp – que eram os frippertronics com disco music. É sempre sobre manipular os curto-circuitos entre mente e bunda. O George Clinton sugeria libertar a mente para a bunda segui-la. Mas, como estamos numa época em que a mente está totalmente capturada, então a ocupação tem que começar pela bunda mesmo (ops).
Por fim, com o álbum novo na praça quais são os planos futuros do grupo?
Alex Antunes: Mais um EP ainda este ano? Tem umas faixas correndo por fora do que deve ser o próximo álbum. Já temos show de lançamento marcado em São Paulo, só não sei se ainda no final de 2024 ou no começo do ano que vem. E provavelmente um DispliFest, um encontro mágico-literário.
Fernando Bones: O passo natural é fazermos um show de lançamento, mas a configuração interestadual da banda pede certas condições de produção. E vamos seguir promovendo o disco com mais material audiovisual, merch, turnês, quem sabe? E enquanto isso, já irmos trabalhando no próximo álbum cujo conceito já existe: putaria mística. 😀
– Bruno Lisboa escreve no Scream & Yell desde 2014. Escreve também no www.phono.com.br