Entrevista: “A (CineBH) nasceu em 2007 para ser o evento internacional (de cinema) da capital mineira”, diz Raquel Hallak

entrevista de João Paulo Barreto

A Mostra de Cinema de Belo Horizonte, popularmente conhecida como Cine BH, chegou à sua 18ª edição buscando trazer não somente um diálogo entre espectadores e o cinema, mas, também, valorizando os processos de co-produção entre profissionais daqui e de outros países com o Brasil CineMundi, importante ponte entre projetos e potenciais parceiros.

Raquel Hallak, CEO da Universo e coordenadora da Mostra Cine BH e do Brasil CineMundi, que esse ano chega à sua 15ª edição, conversou sobre a edição desse ano com o Scream & Yell, que cobre o evento presencialmente direto da capital mineira. Ela falou sobre a homenagem à Anna Muylaert: “Anna vem trazendo essa fala do ponto de vista da mulher. Vem trazendo essa fala que vai dialogar com essa temática do evento e sobre essas questões políticas”, observa.

Um dos objetivos da Cine BH é abrir espaço para o diálogo com os países vizinhos. “Cada vez mais, estamos nos aprofundando nessa pesquisa do cinema latino-americano”, conta Raquel, que também destaca a importância do Brasil CineMundi: “É a nossa ação de internacionalização do cinema brasileiro. É muito forte”, explica. Leia a conversa na integra abaixo.

Dona de uma filmografia que dialoga muito com os aspectos sociais brasileiros, Anna Muylaert é a homenageada da 18ª edição da Mostra de Cinema de Belo Horizonte. Você poderia falar sobre a importância dessa escolha?
Foi uma surpresa muito boa, porque a gente fica tentando ter uma homenageada que vai dialogar com a temática da Mostra Cine BH, mas também é importante que possa ter tenha um filme novo. Nunca é fácil escolher a homenagem do festival. Diante de alguns nomes, acabou que deu super certo a indicação da homenagem à Anna Muylaert. “Durval Discos”, seu filme de estreia, está fazendo vinte anos e é um trabalho que vamos exibir e que marcou muito o cinema brasileiro. Cada vez que eu converso com Anna, vou a conhecendo mais. Foi uma escolha super certa. O que ela representa para o nosso cinema. Essa mulher cineasta. Ela também tem um posicionamento muito de vanguarda sobre o cinema brasileiro nesse momento político que estamos vivendo. Nesse momento de regulamentação do VOD e das plataformas de streaming. Ela vai trazer uma fala muito reflexiva para os dois debates que vai participar. Um terá o tema “Transformações do Audiovisual” e o outro será “Mulheres no Comando”. A ideia é um pouco essa mistura de tudo. Porque a temática é sobre o estado do cinema latino-americano. É uma reflexão bem política de como cinema sobrevive em cada país. E a Anna vem trazendo essa fala do ponto de vista da mulher. Vem trazendo essa fala que vai dialogar com essa temática do evento e sobre essas questões políticas em um momento em que a gente também vai focar nesse debate com essa parte da regulação do VOD. A retrospectiva dos filmes da Anna Muylaert é bem importante, pois ela é uma das mulheres do cinema brasileiro e tem esse trabalho que é cheio de personagens complexos e contraditórios. A ideia é explorar um pouco do que isso representa em sua filmografia. Ela traz essa questão da presença feminina no audiovisual nacional, com toda sua trajetória, singularidade, com os rumos que ela deu ao cinema brasileiro com os seus filmes. Suas obras envolvem muito o público. Ficamos sempre muito conectados aos trabalhos dela. Fazer essa retrospectiva de suas obras nos deixa bem felizes.

Chegando aos dezoito anos, a Mostra Cine BH enfrentou diversos desafios nessa trajetória. Como coordenadora e idealizadora do evento, você poderia falar um pouco sobre esse marco?
A Mostra Cine BH sempre foi um evento muito desafiante em tudo que fazemos. É um evento que acontece em uma capital, com uma participação de convidados internacionais, mas que sempre teve um foco ligado ao ponto de vista da cidade. Estamos falando de Belo Horizonte e a indústria audiovisual não está aqui. Estamos falando de um evento que começou há dezoito anos ainda quando a projeção era em película. E sempre buscamos um movimento tanto nacional quanto internacional de projetar a cidade. O primeiro grande desafio à época era falar de Belo Horizonte. Tínhamos esse desafio de fazer um festival internacional em uma cidade que era pouco conhecida internacionalmente. Uma cidade planejada na qual os bairros possuíam salas de cinema. Belo Horizonte chegou a ter 120 salas. Hoje, tem apenas seis salas de cinema de bairro. As pessoas vinham do interior para Belo Horizonte e cada uma vivia no seu bairro. Não havia um entrosamento. Pensando nisso, fizemos uma pesquisa para levantar essas características da cidade para lançar um evento que pudesse ser de convergência de bairros. A mostra nasceu em 2007 para ser o evento internacional da capital mineira e, ao mesmo tempo, mostrar como Belo Horizonte já foi um destaque em termos de circuito comercial e que todas as salas de cinema de bairro tinham se transformado em outros equipamentos, tinham sido vendidos ou virado igreja. Começamos o Cine BH há 18 anos já com esse grande diferencial que era transformar o Cine Santa Teresa, que era um equipamento tombado, por isso que ele não foi totalmente destruído. Ele nasceu em 1945 e, em 1980, foi desativado. O prédio foi todo descaracterizado. Foi boate, foi fábrica de massa de macarrão. E nós, visitando o bairro, falamos: ‘é aqui que vamos fazer esse cinema para o Cine BH’. Conseguimos fazer uma parceria com a prefeitura. Demolimos o prédio interno, o que representou 30% da obra, e abrimos, mesmo provisoriamente, o cinema. Fizemos o festival lá durante quatro anos. Depois a prefeitura fez a reforma definitiva, mas não o projeto que a gente gostaria. Mas, enfim, havia ali um cinema municipal funcionando. E a Mostra Cine BH passa a ter uma missão de ocupar vários espaços da capital que não eram destinados ao cinema. Quando o circuito cultural da Praça da Liberdade ficou pronto, o prédio do CCBB, nós fomos lá e nada era cinema. E aí a gente vai pra Praça da Liberdade e ocupa de forma pioneira os prédios. Em um aconteceu uma oficina, no outro funcionou a sede do evento. No CCBB, instalamos um cinema. Enfim, estou contando essa história para falar desses desafios que é fazer um evento de capital em uma cidade que não tem um cinema grande. Temos esse desafio todo ano, de alguma forma, tentar montar uma sala em um prédio que já foi cinema um dia para mostrar que aquele lugar poderia continuar sendo um. Tem público para isso. Vão ser ao todo dez espaços na capital mineira, tentando manter, não sei se o termo é resistência, mas, sim, coerência, com essa ocupação dos espaços nos bairros, e não fazer o evento em um cinema de shopping. Seria muito mais cômodo fazer em um shopping. Mas a ideia é exatamente ocupar esses espaços de rua. Eu acho que é uma característica do nosso trabalho: levar o cinema até o público.

E esse ano a Mostra volta a focar no cinema latino-americano.
Sim. De três anos para cá, achamos um viés muito bacana da mostra que é torná-la um evento latino-americano. Desde o início do evento, já temos algumas mostras que são um sucesso, a “Diálogos Históricos”. A “Mostra Praça”, que sempre fez parte do nosso escopo, permanece. Criamos a “Mostra Cidade em Movimento”, que é uma mostra diálogo com a cidade, que olha para dentro dela. Um dos diferenciais da Mostra Cine BH é estar sempre atenta para o reconceituar do evento que acontece em uma capital na qual, diferente do interior, temos que estar atentos, porque as pessoas estão sempre dispersas com outras atividades e em outras atrações. E, ao mesmo tempo, buscar um posicionamento no circuito nacional e internacional de festivais. Abrir esse espaço para o diálogo com os países vizinhos, que tem sido uma experiência muito bacana que estamos vivenciando de três anos para cá. Cada vez mais, estamos nos aprofundando nessa pesquisa do cinema latino-americano. E, esse ano, trouxemos alguns dados que vão estar no catálogo da Mostra e que a curadoria levantou. Por exemplo, no Brasil, em 2024, só estrearam seis filmes latino-americanos no circuito comercial. Eu acho que seremos um grande aliado nesse diálogo de cinema, nessa conexão com os 20 países que integram a América Latina.

Completando quinze edições em 2024, o Brasil CineMundi se firma como uma importante e já imprescindível forma de encontro entre realizadores e potenciais produtores. Qual a avaliação desses quinze anos de atividade do projeto?
É uma trajetória muito vitoriosa. Passaram por aqui vários projetos. Por isso que estamos fazendo essa mostra de obras que passaram pelo CineMundi. Filmes como “Bacura”u (2019); “A Febre” (2019) e “A Transformação de Canuto” (2023). A cada ano, consolidamos o Brasil CineMundi como um evento de coprodução muito importante, com parcerias de eventos de mercado que têm assegurado a participação no cinema brasileiro. O Brasil CineMundi é a nossa ação de internacionalização do cinema brasileiro. É muito forte. É aqui que se dá as coproduções. É aqui que a gente está conseguindo conectar projetos com profissionais internacionais, e, também, um grande laboratório de mentoria, de consultoria, de mapas, de laboratórios de roteiro. É onde nascem os nossos filmes, como costumo dizer. São projetos nos quais apostamos. Deixamos de apostar em alguns para apostar em outros. Na seleção, quando ela é assertiva, para nós, é mais do que um alívio. É realmente uma satisfação grande de ver esses filmes nascendo. Por isso, vamos trazer um pouco dessa história de quinze anos nessa’ edição. O nosso catálogo vai trazer um pouco dessa trajetória, também, de números dessa evolução de quinze anos. E ela nasce exatamente para ocupar esse espaço que não existia há quinze anos. Falar de coprodução é um bicho de sete cabeças, ainda. Então, imagina como era há quinze anos. As pessoas achavam que se fosse coproduzir, ia perder o direito autoral do filme. E é o contrário. Se você não tiver um coprodutor, seu filme não vai circular. Então, assim, hoje, quem já está trabalhando com cinema, sabe perfeitamente que, para o seu filme estar lá fora circulando, para ele estar no festival, a chance é muito maior, ou quase única, se você tem um parceiro de coprodução. E eles firmam essa parceria, têm interesse, quando o projeto ainda está no papel. Nessa edição, temos 38 projetos selecionados. E é essa possibilidade de fazermos essa conexão com o mercado e de se tornar uma grande rede de contatos. Às vezes, você apresenta o projeto aqui, a pessoa para quem você apresentou não se interessa, mas você já está com outro projeto. E pode haver esse outro interesse. É algo que vira uma multiplicação de efeitos muito grande. É um ano de comemoração em dose dupla.

Quais serão os debates trazidos pelo evento?
Esse ano, o ciclo de debates vem maior e mais completo. Porque, pela primeira vez, estamos unindo as duas demandas do Cine BH e do Brasil CineMundi. Então, criamos um ciclo de debates que se chama “Transformações e Oportunidades no Audiovisual Brasileiro”. Ele vai sediar os debates que dizem respeito à temática do evento, Os “Estados do Cinema Latino-Americano”. Então, no Brasil CineMundi, cada um poderá trazer um pouco a sua experiência de como que acontecem as coproduções, de como é produzir nos outros países, já de acordo com os realizadores que vão estar aqui presentes, principalmente os da “Mostra Território”, que é a competitiva no Cine BH. É fundamental a formação para fomentar o audiovisual. Temos um programa de formação grande. O ciclo de debates do Cine BH tem, também, esse propósito de uma ação formativa. Isso porque fazemos uma conexão entre os profissionais brasileiros e os internacionais. Tem sempre uma troca de experiências que é muito interessante.

– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde, de Salvador. A foto que abre o texto é de Leo Lara.



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