texto de Renan Guerra
Qual a função de uma primeira-dama em um governo? Bernadette Chirac, esposa de Jacques Chirac, passa a se questionar sobre seu papel na política francesa quando é essencialmente colocada em segundo plano por seu marido, então recém-eleito para a presidência da França, em 1995. Vista como antiquada e sisuda, Bernadette irá passar por uma transformação que visa popularizar sua imagem. Inspirada pelas ações de Princesa Diana, Bernadette, que era uma madame de direita com aura da velha aristocracia passa por um rebranding se conectando com ações sociais, lutas na defesa da saúde e ações voltadas para questões como cuidado e prevenção de transtornos alimentares e enfrentamento ao HIV/AIDS. Dito tudo isso, podemos pensar que a transformação publicitária de uma madame de direita em uma “lady do povo” não necessariamente seria a história mais atraente possível de nos envolver e nos convencer com sinceridade. Porém, essa história se torna frivolamente divertida quando contada em “Bernadette” (2024), de Léa Domenach, pela perspectiva do humor, buscando uma exacerbação quase camp de toda essa jornada.
A espinha dorsal do filme está na atuação certeira de Catherine Deneuve – figura pública com visões políticas também complexas, tal qual Bernadette. Deneuve consegue desenhar todas as nuances dessa personagem, indo da perspectiva de mulher traída, rechaçada pelo marido e da mãe cheia de culpas e dúvidas até a figura pública bem-humorada e com pulso firme para desenvolver as atividades em que acreditava – seja ir da fundação de importantes projetos assistenciais até a aproximação com celebridades para deixar sua imagem mais pop. Além disso, ela é ladeada por duas atuações excelentes de Michel Vuillermoz como Jacques Chirac e Denis Podalydès como Bernard Niquet, o responsável pela transformação da primeira-dama e que torna-se seu braço direito na virada do século. Os dois atores são da Comédie-Française e trazem um tom de humor maravilhoso para o filme, que cria um contraponto para a atuação propositalmente mais séria de Deneuve e é nesses contrapontos que se criam alguns dos momentos mais divertidos do filme, especialmente nos jogos de poder entre marido e mulher entre Bernadette e Jacques.
Toda a construção do filme de Léa Domenach é feita dentro desse cenário de opulência, de exagero das elites e navega por esse universo de intrigas e redes de poder da política. Para isso ela usa e abusa das cenas em grandes cenários rococó e aproveita para construir toda essa estética no figuro de Bernadette, todo com peças de Karl Lagerfeld – estilista que era o preferido da primeira-dama – e que proporciona uma ampla transição dos terninhos e conjuntos datados para looks modernos, mudança que ajuda a trazer um ar mais jovial a imagem da personagem.
É importante deixar claro que “Bernadette” segue os ditames clássicos da comédia mainstream francesa dos anos 2000 e isso não é um demérito, pois o filme se utiliza dessa estrutura para construir um filme muito bem estabelecido. É sempre interessante quando diretores se propõem a navegar por fórmulas bem definidas e, ainda assim, conseguem construir narrativas frescas e envolventes.
Falando em narrativa, o filme de Domenach já deixa bem claro desde o início: este é um filme baseado numa personagem real, mas nem tudo aqui é real, este ainda é um filme de ficção, então há muitas liberdades “poéticas”. Tanto que o trama se aproveita muito dessa figura midiática de Bernadette e não tem medo de exacerbar essas possibilidades no sentido de gerar um filme mais bem humorado e mais aprazível, pois na realidade sabemos que Bernadette Chirac é uma figura bem mais obtusa do que o filme nos apresenta. De todo modo, historicamente é interessante pensar que essa guinada midiática da primeira-dama foi fundamental para a aceitação de seu marido Chirac e para sua reeleição em 2022, frente à extrema-direita, representada à época na figura de Jean-Marie Le Pen – situação que colocada em perspectiva temporal nos relembra que hoje em dia essa mesma extrema-direita segue sendo figura importante no jogo político francês na figura da filha de Jean-Marie, Marine Le Pen.
Incômodas questões políticas à parte, o fato é que “Bernadette” consegue nos colocar em suspenso por cerca de uma hora e meia, fazendo com que a gente dê risada, se encante e se envolva com seus personagens, nos fazendo relembrar que as pessoas podem ser bem mais complexas do que podemos ler de primeira. O filme de Léa Domenach não julga as ações desses personagens e nem tenta criar caminhos para que a gente faça julgamentos, a ideia aqui é se deliciar com um estudo de personagem, pensando como o nosso jogo político pode ser esse cenário de equilíbrios e destemperos, esse equilibrar de pratos em que ricos e poderosos se preocupam mais com a manutenção de seus privilégios e com a sua imagem pública do que com qualquer outra coisa. É isso, uma comédia pop que nos faz sair da sala leves de tanto rir, mas ainda assim com a pulga atrás da orelha.
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava.