Cinema: “Fernanda Young – Foge-me ao Controle”, de Susanna Lira, nos leva em viagem intensa pela mente da escritora

texto de Renan Guerra

Escritora, roteirista e apresentadora, entre outras coisas, Fernanda Young foi um nome fundamental na cultura pop brasileira da virada do século. Quem viveu os anos 2000 no Brasil de alguma forma foi impactado por seus textos, seus pensamentos e sua forma de ver o mundo, seja em suas séries na Globo, como o sucesso “Os Normais” (2001/2003), em sua presença no GNT, em programas como “Saia Justa” (2002/2004) e “Irritando Fernanda Young” (2006/2010) ou em seus livros de prosa e poesia. Fernanda delimitou uma forma de pensar e olhar para o mundo entre o humor e a dramaticidade em uma potência que poucos autores tatearam nos últimos 30 anos. Então fica a pergunta: como contar e resumir sua história e impacto em um filme documental de menos de 90 minutos? Já adiantamos: você não encontrará essa resposta em “Fernanda Young – Foge-me ao Controle” (2024), documentário de Susanna Lira, pois a diretora não busca em nenhum momento resumir ou linearizar a história de Fernanda Maria Young de Carvalho Machado, pelo contrário, ela busca expandir o seu universo imaginário, nos possibilitando tatear toda a complexidade, diversidade e intensidade desta artista que nos deixou tão cedo.

Fernanda faleceu em 2019, aos 49 anos, em uma dessas mortes absurdas e esdrúxulas, em uma parada cardíaca que decorreu de sua eterna relação com a asma. Essa perda abrupta deixou uma sensação de incompletude de uma obra que ainda estava em plena ebulição. De todo modo, em retrospecto, é ainda bastante surpreendente a quantidade fervilhante de material que a escritora nos deixou, sejam em livros, séries, filmes, programas, entrevistas e falas que ainda reverberam e que, vira e mexe, voltam a circular pelas redes sociais, conquistando novos públicos que se tornam apaixonados pela inteligência, ironia e sagacidade de Fernanda. Por isso mesmo é de se louvar a existência de um documentário tão original como “Fernanda Young – Foge-me ao Controle”.

Susanna Lira, documentarista experiente e com grandes filmes na bagagem, opta por uma construção que não se importa em contar nenhum fato linear da biografia de Fernanda e nem se atenta em delimitar seus feitos e louros – e isso que ela tem muitos, entre livros e programas de sucesso que moldaram a cultura pop brasileira moderna. Susanna está muito mais preocupada em tecer uma colcha de retalhos que nos aproxima das inquietudes de sua personagem e nada poderia ser mais rico que isso. Fernanda era uma pessoa inquieta, movida por seu olhar único sobre o mundo, ela sabia como observar e captar o seu universo ao redor e transformar isso em prosa, poesia e roteiros únicos, que conseguiam dilapidar as incertezas, o medo, as angústias e as idiossincrasias do cotidiano de forma inteligente, indo do drama existencialista ao humor escatológico sem nenhum medo. Por isso mesmo, ter acesso durante uma hora e meia a sua mente é um privilégio.

A trama de “Fernanda Young – Foge-me ao Controle” é basicamente construída de falas e cortes da própria Fernanda e de leituras realizadas pela atriz Maria Ribeiro de seus textos em prosa e poesia. Além disso, em breves momentos somos apresentados a pequenos trechos de suas obras televisivas, indo de cortes rápidos de “Os Normais” a inserções de sua última obra, “Shippados” (2021). O único momento que quebra essa narrativa é um texto em off lido por Estela May, uma das filhas de Fernanda, falando sobre o amor de sua mãe e de seu pai, Alexandre Machado, parceiro de vida de Fernanda tanto no campo amoroso quanto profissional. Podemos até considerar que o tempo de tela dedicado à relação dos dois é bastante curto, mas isso é compreensível, pois esses poucos minutos conseguem captar de forma única e sincera essa relação tão íntima e inspiradora.

De suas reflexões sobre o casamento ao seu olhar sincero sobre a maternidade, de sua naturalidade ao falar sobre saúde mental aos seus pensamentos cortantes sobre ser mulher, em tudo isso o filme de Susanna Lira consegue nos dar um panorama rico e interessante dessa personagem tão cheia de nuances. Essas qualidades obviamente advêm do roteiro assinado por Beto Passeri, Bruno Passeri, Clara Eyer e Ítalo Rocha, mas ganham ainda mais corpo na montagem sedutora e envolvente de Ítalo Rocha, que mescla imagens de arquivo da artista, cenas de filmes, desenhos assinados por Fernanda e outras passagens poéticas que ajudam na narrativa – tanto que o filme ganhou o prêmio de Melhor Montagem no Festival “É Tudo Verdade”. Construir uma narrativa baseada em recortes, em pensamentos, em incursões sensoriais poderia criar um filme monótono, mas, pelo contrário, todos esses artistas em conjunto constroem um filme ágil, que nos envolve em seu universo e que nos leva além, querendo mais.

“Fernanda Young – Foge-me ao Controle” nos leva em uma viagem existencialista pela mente de Fernanda e o que soa mais assombroso é que sua forma de ver o mundo e de olhar pro outro soa cada vez mais interessante, rica e de intensa identificação. Fernanda é essa voz que fala sobre mulheres esquisitas, sobre figuras à margem, sobre as ovelhas negras da família, sobre os esquisitos que se sentem deslocados, e por isso mesmo o filme de Susanna Lira nos cria um espaço de acolhimento, em que nossas estranhezas se mesclam as de Fernanda, criando um cenário de intensas possibilidades. No final das contas, o filme é um mergulho poderoso na mente de uma artista inquieta, mas é também um chacoalhão para que a gente adentre em nossos próprios questionamentos. E em tempos de conteúdos que apenas nos confortam e parecem repetir aquilo que queremos ouvir, é fundamental que ouçamos aquilo que é dissonante e que nos movimenta. Nisso o filme de Susanna Lira apenas nos relembra que devemos ver e rever, ler e reler o universo de Fernanda Young!

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– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava

One thought on “Cinema: “Fernanda Young – Foge-me ao Controle”, de Susanna Lira, nos leva em viagem intensa pela mente da escritora

  1. Que leitura linda do filme, que é um documentário poético e comovente. Descobri carta para alguém bem perto em uma livraria – a capa de chamou a atenção – e fui tomado pela escrita dela, depois pelas falas, cabelos, tatuagem, honestidade e subversão. De fato, ela é fundamental na cultura pop brasileira.

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