texto de Renan Guerra
fotos de Chico Castro
Quando consideramos o conceito de biografia pensamos em um formato bem estabelecido, com uma narrativa formal que fala de infância, formação e fase de maturidade, com fatos e marcações temporais – temos algumas experiências que fogem disso, mas a maioria segue esse padrão. O espetáculo “Roxa”, em temporada circular por diferentes espaços de São Paulo durante o mês de agosto, nos propõe outro tipo de jornada, bem mais corpórea, que nos leva a experienciar junto da protagonista muitas das sensações que a construíram em sua jovem história. Roxa é figura conhecida da noite de São Paulo, integrante do Teatro da Pombagira que já participou de montagens ousadas nos últimos anos, mas além disso é parte do staff de espaços importantes da comunidade LGBTQIA+ na cidade, como o Cabaret da Cecília e a Festa Dando, locais onde é conhecida pela sua fixação com a cor roxa (e seus derivados, como violeta) e pela venda de docinhos conhecidos como pé-de-bixa.
Em seu primeiro espetáculo solo, Roxa nos leva por uma experiência sensorial que passa por sua formação familiar, sua descoberta de seu próprio corpo, sua busca por liberdade e independência e sua caminhada no sentido de uma compreensão de sua identidade no meio de um jogo de binariedade imposto pela sociedade. Tudo isso não é feito por meio de uma narrativa expositiva, pelo contrário, somos convidados a uma espécie de dança ao lado de Roxa, para assim adentrarmos em seu universo composto por sensações diversas e dispersas, por tensões corporais e por um cenário/espaço formado por itens recicláveis coletados por aí que se desdobram em peças artesanais que podem ir de objetos artísticos a peças de roupa.
Quando falamos em tensões corporais, falamos realmente de um tensionamento dos limites do corpo, em possibilidades que vão da dança ao contorcionismo, com a artista buscando expressar desde suas limitações aos seus arroubos de alegria através do corpo. Sob direção de Cassiano Fraga e o que eles chamam de “provocação cênica” de Marcelo D’Ávilla (também Teatro da Pombagira), Roxa parece explorar ao máximo seu corpo e sua narrativa física perante o público, nos transmitindo a partir da performance todas as suas angústias, medos e descobertas. E o que poderia soar hermético e difícil, ganha nuances bastante convidativas, pois nessa jornada passamos por momentos que vão do drama à comédia, com explorações sobre a sexualidade da protagonista, suas experiências familiares e sociais e sua jornada como pessoa vivendo com o HIV.
Produzido pelo grupo Gana Coletiva, o espetáculo “Roxa” poderia ser algo que se levasse a sério demais, mas, pelo contrário, há um bom humor que não deixa o espetáculo se tornar arrogante ou fechado em si mesmo. Roxa conta sua história de forma aberta e livre para que dentro desses espaços e frestas o público também se insira e se identifique com sua narrativa. Para construir esse texto, assistimos ao espetáculo no Teatro Mars, espaço de formatação bastante única em São Paulo, então foi possível conferir um formato único, que nem sempre se repetirá nos outros palcos indicados ao final do texto, pois há detalhes pensados apenas para o Mars – local importante que tem acolhido diferentes experiências de arte e celebração LGBTQIA+ nos últimos anos.
Nesse caminho entre intimidades faladas em primeira pessoa e performance experimental, o espetáculo “Roxa” pode não ser o local mais acessível para todos os públicos. Há referências e detalhes que podem fazer mais sentido para pessoas que tenham vivências mais diretamente relacionadas à da artista. Mesmo assim, pode ser uma experiência rica para todo mundo que se abre ao universo de Roxa. Se colocar perante o outro e entender suas dissonâncias, suas singularidades e suas fragilidades é uma tarefa potente que, na maioria das vezes, só a arte nos proporciona. Se debruçar sobre o universo de Roxa é como um vislumbre por esse mundo de pessoas que tentam achar seu lugar num mundo em que os preconceitos ditam quase tudo e em que o diferente é rechaçado. Roxa é um reluzir violeta no meio da escuridão. Por isso convidamos você a se entregar a esse universo e sair de alguma forma bagunçado – pode ser para o bem ou para o mal, o bom é que você saia diferente após a sessão.
De 23 a 25 de agosto o espetáculo estará no Teatro Alfredo Mesquita. Já nos dias 30 e 31 ele será exibido no Teatro Arthur de Azevedo. Ingressos gratuitos aqui.
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava.