introdução de Diego Albuquerque
Faixa a faixa de Marcelo Cabral
A Cipó Fogo surgiu pelo inconformismo com a escalada de casos de racismo no país, de violência de gênero, homofobia, transfobia, e do advento do fascismo tropical digital. Três amigos de longa data se reuniram para expressar sua indignação através de uma música brutal, diante da brutalidade de um mundo que parece girar para trás. Em 2024, após cinco lançamentos, o guitarrista Aldo Jones se desligou do projeto, quando o Cipó Fogo passou a ser um duo formado por Marcelo Cabral (voz e letras) e André Corradi (instrumental).
Marcelo Cabral é o cantor e compositor do projeto. Com uma carreira extensa em Alagoas, Cabral fez parte de bandas como MC+20 e Coisa Linda Sound System. André, por sua vez, é músico, compositor e produtor de São Paulo. Tocou baixo no O Surto, Oito, Trap, entre outros projetos, com shows ao vivo Brasil afora. Além disso, Corradi é luthier e construiu todos os instrumentos usados nas gravações do duo.
Com essa nova formação eles estão apresentando “Born Enslaved” (2024), um EP de cinco faixas que, talvez, seja o trampo mais brutal, cru e direto da Cipó Fogo, combinando influências de hardcore punk, thrash e death metal, grindcore, doom e stoner com ficção, seja literatura ou audiovisual, do noticiário, ou mesmo da ciência. Ouça o EP no seu streaming preferido clicando aqui e entenda melhor a pancada sonora. Abaixo, Marcelo Cabral comenta o EP faixa a faixa com exclusividade para o Scream & Yell!
01) Born Enslaved – Nossa mensagem é bem curta direta, não tem muito arrodeio, e esse é o caso de “Born Enslaved”, faixa título do nosso sexto lançamento. A música é bem agressiva, papo de bater cabeça mesmo, as linhas de guitarra do Corradi nesse tema são bem nervosas e a letra quase um haikai, com três frases que nos faz questionar se somos realmente livres, que tipo de liberdade temos, ou que tipo de liberdade nos restou ter, de acordo com o contexto social e econômico em que estamos inseridos. Durante a guerra fria e até os dias de hoje, muito se fala sobre as maravilhas da liberdade dentro do sistema capitalista, mas será que um herdeiro milionário e um morador de rua, um branco rico e um preto pobre, possuem a mesma liberdade prevista nas leis, na constituição de qualquer país minimamente civilizado? Sabemos que não.
02) Distopia – Escrevi essa letra, a única do EP em português, no princípio do conflito na Faixa de Gaza. Estava viajando com minha família, e acordei cedo, em um bosque perto de uma praia, lendo as notícias no celular, totalmente chocado com a situação dos palestinos. Quando minha esposa acordou, abriu a porta ainda esfregando os olhos, coitada, e eu, bastante afetado por tudo que tinha lido, descarreguei tudo em cima da pessoa sonolenta: “cara, Palestina, cinco mil mortos, 70% crianças e mulheres, não pode ser”… e ela me cortou no meio da frase (com razão né? Nem bem tinha despertado) e me falou “Marcelo, devagar, calma, tô acordando agora. Olha onde você está, vai escutar um pouco os passarinhos, o mar”… imediatamente a letra caiu na minha cabeça. Comecei a criar umas melodias para ela, mas jogamos tudo fora quando Corradi apareceu com essa lapada na orelha instrumental, algo como um blackened grind, ou algo assim, e que traduz bem a letra em sua angústia e sensação de impotência diante dos horrores que sucedem em Gaza com o povo palestino, mas que poderia ser o povo yanomami no nosso Brasil, ou em tantos lugares desse mundo diatópico, injusto e cruel. Meses depois de escrever a canção, me deparei com o poema do poeta palestino Marwan Makhoul, que diz: “Para escrever um poema que não seja político, devo escutar os pássaros. Mas para escutar os pássaros, é preciso que cesse o bombardeio”.
03) Made of Stars – A parte instrumental é esse doom meio psicodélico criado pelo Corradi, e a inspiração para a letra surgiu de um vídeo onde o físico Neil deGrasse Tyson comenta que, para ele, um dos grandes presentes da astrofísica para a humanidade é o conhecimento de que somos feitos da mesma matéria das fornalhas estelares, que nossos corpos humanos e finitos são compostos dos mesmos elementos presentes nas estrelas e que somos um com a galáxia, com o universo mesmo, algo muito próximo do entendimento de algumas correntes espirituais milenares do Oriente. Fiz um paralelo entre essa divagação cósmica de Tyson com a ideia de racismo. Ou seja, que em meio a tantas maravilhas e mistérios do universo, um idiota qualquer pense que a cor da sua pele o torna superior a outra pessoa. Essa música não é sobre o racismo estrutural da nossa sociedade, que resulta em preconceito, injustiças, brutalidade policial, etc. “Made of Stars” é sobre o sujeito racista, o indivíduo mesmo, essa criatura suja que rasteja pelo mundo gastando oxigênio, água e comida. É sobre a quão esdrúxula, sem sentido e patética é essa ideia, além de muito feio, vergonhoso e criminoso, que algum branquelo ignorante pense que é superior ao, sei la, Jimi Hendrix, Martin Luther King, ou ao próprio DeGrasse Tyson, cientista e homem negro.
04) Pequeñas Opresiones Diarias – Base pesadona, arrastada, numa pegada mais death metal, e com uma parte veloz galopante que encerra o tema. A música é do André Corradi e a letra, em espanhol, minha. A canção tem essa atmosfera rastejante para falar sobre as opressões enfrentadas pelos trabalhadores todos os dias: o pouco tempo de sono e descanso, as torturantes horas em coletivos de transporte das distantes periferias ao trabalho, as pequenas humilhações diárias, a tortura psicológica das pressões e metas das empresas, enfim, a forma como o neoliberalismo nos esmaga como baratas é a imagem que desenhei para essa música, onde os trabalhadores são retratados como insetos que rastejam na terra para sobreviver, enquanto os donos dos meios de produção jogam golf com os parça. Ou como disse na obra “A força da vida”, o grande artista dos quadrinhos, Wil Einsner: “você, sendo apenas uma barata, só quer viver! Pra você já é o bastante! Mas eu… eu tenho que perguntar. Por quê?”.
05) Fail – Essa é, de alguma maneira, uma conclusão das reflexões que tentamos provocar com este EP. É o um dos poucos temas do Cipó Fogo composto apenas por mim, letra e música, onde imprimo um pouco das minhas influências de punk/hardcore que trago de outros projetos como o Mental, MC+20 e Otari. A letra é inspirada no curta de animação “Os Três Robôs”, da série de TV “Love, Death and Robots”, onde os personagens autômatos vagam na paisagem de um futuro pós-apocalíptico, porém repleto de paz e natureza. Neste passeio, conversam e especulam sobre a extinta humanidade, enquanto observam e interagem com os vestígios deixados por nós em nossa desastrosa passagem pelo planeta. A mensagem da música é de que se seguirmos como estamos, se não mudarmos os rumos da história humana, como espécie, talvez o melhor mesmo é deixar esse mundo em paz, para bichos menos nocivos e perigosos que nós.