entrevista de João Paulo Barreto
Por sua rica trajetória nas artes desde os anos 1980, mais um dos filhos ilustres da Bahia, o ator, diretor e escritor Lázaro Ramos é um dos homenageados na edição 2024 do Festival de Cinema de Vitória. Em momentos como esse, para alguém que galgou tantos degraus dentro do teatro e do audiovisual como Lázaro, é inevitável não seguir por uma estrada de reminiscências, lembranças e reencontros com a própria memória. Em um papo com Scream & Yell, o ator soteropolitano refletiu sobre um encontro consigo mesmo nesse caminho de sucesso, mas, também, de muita luta, trabalho e foco no futuro.
Atento ao que o circunda e distante de qualquer acomodação em sua carreira, Lázaro também abordou no papo um reencontro consigo, uma necessidade de não se deslumbrar com a fama e de não se esquecer do seu entorno, além de relembrar momentos marcantes de sua trajetória, como quando atuou, ainda criança, ao lado do gigante Mário Gusmão. Sobre sua convivência com outros mestres, como Zózimo Bulbul e Zebrinha. Este último, em entrevista ao Scream & Yell em 2023, falou sobre como enxergava no próprio Lázaro a figura de um dos seus próprios mestres.
Sobre as lembranças de Bulbul, Lázaro crava uma forte mensagem que o diretor de “Alma no Olho” (1974) lhe transmitiu e como isso reverbera no modo como ele enxerga sua própria importância diante de outras pessoas. Já ao relembrar do seu primeiro trabalho profissional, aos dez anos de idade e ao lado de um gigante como Mário Gusmão, Lázaro Ramos explana sobre a importância dos seu diálogo com ele e como esse tipo de contato vem se perdendo para as novas gerações.
Oriundo do bairro do Garcia, Lázaro pontua também como os coletivos organizados tanto em sua infância quanto em todos os lugares por onde passou em sua trajetória inicial foram formando em sua consciência a importância de se fazer parte de um todo. Leia o papo na integra abaixo!
Lembro-me do nosso último papo, em 2018, por ocasião do lançamento do documentário “Bando, um filme De”. Falamos sobre sua trajetória ter seguido por esse caminho de atuação e passando pelo processo de direção. À época, você já tinha dirigido o espetáculo “Namíbia, não!”, passava para a cadeira de documentarista ao lado de Thiago Gomes e, pouco tempo depois, estreava na direção da ficção com “Medida Provisória” (2020). Antes disso, você já tinha iniciado a temporada com “O Topo da Montanha”. Em um momento de homenagem, após tanto tempo de carreira, é inevitável não seguir por um aspecto de introspecção e de olhar para a estrada percorrida. O que você diria para a aquele garoto soteropolitano que começou no teatro tão jovem? E indo além, o que você o tem como exemplo na busca por trilhar a mesma estrada artística?
Essa pergunta aparece de vez em quando durante a minha trajetória profissional. E, felizmente, a resposta vai mudando. Porque todas as vezes que eu falo para o menino, eu falo para o adulto, também. E acho que o que eu falaria hoje é: “dobre a aposta em você mesmo”. Porque em muitos momentos não apostamos na gente, não investimos na gente. E mesmo quando conquistamos algumas coisas, tem um momento que parece que chegou a um topo ou não sabemos exatamente o que é esse topo. O meu topo, hoje em dia, tem muito a ver com a questão pessoal e profissional de conseguir levar conteúdos relevantes para as pessoas. Mas para ser relevante é preciso escutar muito o seu tempo. Então, eu diria mais: “escute o seu tempo e dobre a aposta em você.” É o que estou fazendo agora nesse momento após ter construído tanta coisa, de ter vivido tanto. Tenho me preparado cada vez mais para ler melhor o meu tempo e continuar produzindo coisas que sejam relevantes para as vidas das pessoas. Levando assuntos e discussões que sejam importantes e que façam diferença no dia a dia e na hora das pessoas tomarem suas decisões. É isso! É um acredite em você com outras camadas essa resposta (risos). Ao mesmo tempo fazer isso com a consciência de que, para a gente chegar em algum lugar, é pela força de coletivos – pelo menos a minha experiência é essa. Seja o coletivo do Projeto Recreio, quando comecei a fazer teatro no meu bairro; ou o coletivo dos estudantes do Centro Integrado Anísio Teixeira, que faziam teatro comigo; ou o coletivo dos funcionários da época em que eu era técnico em patologia, onde um apoiava o outro para conseguir realizar o nosso trabalho. E chegando ao Bando de Teatro Olodum, que me deu toda uma formação e acolhimento para executar melhor essa profissão. Essa força do coletivo não pode ser esquecida. Mesmo que eu tenha feito isso com as minhas características individuais, o fortalecimento foi um investimento no coletivo.
Aos 45 anos, uma carreira consolidada, quais são ainda os desafios em sua trajetória profissional que você busca alcançar e superar?
Os desafios que estou me impondo têm a ver tanto com literatura quanto com a minha carreira de diretor. Como ator, tenho escolhido projetos diferentes de tudo que já fiz até então. E como diretor quero muito experimentar linguagens. Foi muito bom para mim eu ter dirigido o “Medida Provisória”. Depois ter dirigido “Um Ano Inesquecível Outono”, que é um musical para jovens, uma produção até maior que o “Medida Provisória’, mas em outro gênero, outro estilo, me impondo novos desafios. Acabei de dirigir a Ingrid Guimarães em uma comédia de costumes, a “5X Comédia”, que vai estrear em agosto. Então, essa experimentação em vários gêneros é o que eu estou buscando. E na literatura estou pensando muito em explorar fazer livros para adultos – que é um lugar de que tenho medo. Eu fiz o “Na Minha Pele” (2017), fiz o “Medida Provisória – Diário do Diretor” (2022), mas, investir assim mais profundamente, foi na literatura infantil. São sete livros até hoje. Terminei a continuação do “Na Minha Pele”, que não terá esse título, posso até te dizer aqui, e estou começando uma ficção para adultos. Estou me mantendo apaixonado. Acho que o que me mantém apaixonado é aprender sempre uma coisa nova. Então, eu estou nesse lugar de aprendizado que é o que está me enchendo os olhos e o coração hoje em dia.
No papo que tive com Zebrinha em 2023, no lançamento de “Ijó Dudu – Memórias da Dança Negra na Bahia”, ele falou sobre o processo de direção do documentário e como sua visão foi crucial para que ele conseguisse seguir como documentarista. “Eu sou muito intuitivo. Mas tenho bons mestres. E esses bons mestres, na verdade, foram meus alunos. Esse filme tem muito da visão de Lázaro Ramos“, me disse Zebrinha. A maturidade de se tornar mestre e ser chamado assim por alguém que você cresceu admirando faz parte desse processo de perceber o tempo e o que ele te traz como reflexão, não? Poderia abordar essa relação sua com gigantes como Zebrinha, como Zózimo Bulbul (a quem você entrevistou), como o citado Mário Gusmão, como Milton Gonçalves, com quem você também atuou, e como essa estrada pavimentada por eles segue adiante contigo e outros de sua geração e da que veio após a sua?
Zebra fez uma fala muito generosa. Mas o que eu aprendi, inclusive com ele, é que os meus mestres continuarão sendo mestres em inspiração. Por isso, inclusive, falo tanto com ele. Porque o que me fortalece são essas vivências compartilhadas dos profissionais que vieram antes de mim. E Zebrinha é um deles. Se ele fala isso, acolho com generosidade. Mas as conversas que tive com Zebrinha sobre o documentário, muitas vezes era só ser somente um ouvido para algo que ele já sabia o que queria fazer. Então, mais do que ser mestre, como ele fala, eu acho que fui um ouvido, uma escuta, uma pessoa para conversar. Me sinto muito orgulhoso por ter essa confiança dele, assim, para compartilhar comigo esse momento tão importante na sua vida, que foi a construção desse documentário que eu acho que é um marco no cinema baiano. Esses mestres se tornam sempre um norte para mim. O Zózimo Bulbul, por exemplo. A frase que ele me disse depois que eu o entrevistei pela primeira vez, de que a câmera era uma arma, que era para eu me sentir à vontade para usá-la, é uma frase que volta sempre. Essas frases que ouvi ao longo da minha vida, dessas pessoas que tão generosamente compartilharam suas experiências, são o que me compõem. Hoje em dia, tem outras pessoas que me procuram nessa função de inspiração, também, e fico muito atento. Porque sei que, às vezes, uma frase ajuda a pessoa a mudar sua trajetória. Então, sei que para algumas pessoas eu tenho esse lugar, mas faço isso com muita responsabilidade, sabendo do meu tamanho, do meu papel, e entendendo, também, que as pessoas não vão contar histórias como a minha. A minha história é uma e as pessoas terão a oportunidade de contar suas histórias e serem quem elas querem, desejam e sonham em ser. É muito esse lugar que eu procuro ocupar. O do estímulo, mas sem imposição de nada, até porque cada um contará a sua história. Principalmente porque, mesmo as minhas inspirações, são pessoas muito distintas e que tiveram histórias muito distintas. E isso é uma grande qualidade. O direito à individualidade, também. Sou muito apegado a elas. Sou apegado ao Mário Gusmão e às conversas que tive com ele, quando no meu primeiro trabalho, fazendo para a TV Itapoan, “O Menino e o Velho” (1988), dirigido pelo Bertrand Duarte, e o último trabalho dele em vida, o “Zumbi Está Vivo e Continua Lutando” (1995), onde eu fazia o Zumbi e ele fazia o Ganga Zumba. Foram conversas diárias que sempre foram muito estimulantes. Acho que sou muito fruto disso. Da oportunidade de ter conversado com essas pessoas. De não só ter assistido, mas conversado. Essas conversas me preenchem muito. Falo isso porque vejo pessoas, hoje, inclusive da nova geração, que quando têm alguém do seu lado com quem podem trocar um papo, preferem ficar no celular olhando coisas que estão distantes de si. Esse olhar para quem está perto é muito importante!
Além de você, a escritora, pesquisadora, poetisa e atriz Suely Bispo recebe homenagem no Festival de Cinema de Vitória. Como escritor e ator, você poderia falar sobre estar junto a ela nesse momento de reconhecimento por todo trabalho?
Acho que com a Sueli tem um espelho que é muito bonito. Fico feliz em compartilhar essa experiência, que é uma experiência da nossa geração. Primeiro que ela é uma artista que sabe do direito de ocupar vários espaços, seja como atriz, seja na literatura, seja na pesquisa como historiadora. E isso é muito bonito porque durante muito tempo parecia que uma pessoa só poderia exercer uma função, e não que as funções poderiam se complementar e nos completar. Então, acho muito bonito de compartilhar isso na história minha com a de Sueli, que também vem de uma experiência do teatro. Do teatro da sua região que é uma região que nem sempre temos olhos voltados para o que se está construindo. Me espelho muito na minha relação com o Bando de Teatro Olodum, também. Fico feliz de a gente estar dividindo esse momento. Fico muito honrado, inclusive. O trabalho dela na literatura e na pesquisa tem sido de grande importância para iluminar o nosso tempo. E estar ao lado de uma pessoa como essa é motivo de muita honra e alegria.
– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde, de Salvador.