Em “LaVaca”, Clarissa Ferreira mistura gêneros musicais em uma jornada que discute os ditames da cultura gaúcha

texto de Renan Guerra

Crescer no Rio Grande do Sul pode ser um tanto agridoce para quem não se encaixa em determinadas normas. Famoso por ter uma cultura forte e que celebra suas raízes, o Rio Grande do Sul é construído sobre uma égide extremamente patriarcal, algo que remonta a sua formação colonial e que seria apenas exacerbado com a chegada de imigrantes italianos e alemães – em um cenário de apagamento de culturas indígenas e afro diaspóricas presentes na região. A cultura gaúcha é remontada no século XX a partir de um universo que celebra binômios bem estabelecidos do que é masculino e do que é feminino e de um cenário rural de pecuária e extrativismo. Apesar de existir uma ampla cultura alternativa no estado, que vai da música ao cinema, com uma forte literatura, muitos desses artistas partem de uma perspectiva de afastamento desses cenários clássicos, alternando ora uma ironia fina sobre essa cultura ora um distanciamento que busca apenas o cosmopolitismo total. Raros artistas se desdobram sobre possibilidades de repensar e remexer nessas raízes de forma clara e séria, sem apelar para o humor. Esse é o caso do trabalho de Clarissa Ferreira, que lançou recentemente seu disco de estreia, “LaVaca” (2024).

Clarissa é doutora em etnomusicologia, pesquisadora e professora da graduação em música popular da Universidade Federal de Pelotas. Com um olhar sério e amplo sobre a cultura nativista gaúcha, ela pesquisa há anos o cenário musical no interior do estado. Para explicar de forma resumida para quem nunca visitou o interior do RS é importante esclarecer que o estado tem uma sólida cultura musical que movimenta o mercado interno, com a produção e manutenção de uma série de artistas e bandas que produzem seus discos, lançam suas canções e circulam por festivais musicais nativistas – que seguem aquele conceito antigo de festival, isto é, de competição, tipo os festivais da canção que rolavam na TV nos anos 1960, 1970 e 1980, com composições inéditas e a apresentação de novos artistas. Esse cenário é fonte de pesquisa para Clarissa que ainda se debruçou sobre outras questões bastante importantes dentro dessa cultura, como a relação com o meio ambiente, com o espaço e a produção rural, bem como a presença e a representação feminina. Tudo isso resultou em diferentes projetos e produções – como o livro “Gauchismo Líquido: reflexões contemporâneas sobre a cultura do Rio Grande do Sul”, publicado pela Editora Coragem em 2022 –, e que agora deságua em música no disco “LaVaca”.

Lançado em abril nas plataformas (e, também, como álbum visual no Youtube e livro conceito), um mês antes das grandes enchentes que assolaram o estado, “LaVaca” poderia ser visto por alguns como um trabalho que nasce no tempo errado, por ser uma crítica direta à cultura de uma região fragilizada. Porém, pelo contrário, o disco de Clarissa Ferreira é um manifesto ainda mais urgente e ganha contornos ainda mais fortes dentro desse cenário de destruição ambiental e descaso governamental. A crítica proposta por Clarissa parte de um cenário de respeito total pela história e pela cultura nativista local, não por um olhar de negação e destruição, mas sim por uma perspectiva de apresentar novas narrativas e olhares a essa construção do que é ser gaúcho, ou melhor, gaúcha. Tematicamente, o disco propõe um olhar diferenciado sobre a figura feminina dentro dessa construção do estado, tanto que parte diretamente da figura da vaca, um contraponto direto à figura do cavalo, tão fortemente celebrado na cultura local. O cavalo é celebrado em canto, poesia e imagem, ele é a figura nobre do campo, porém em contraponto temos a vaca, essa figura atrelada ao feminino e que, curiosamente, é um dos pilares da indústria agropecuária do estado. O imagético da vaca também surge quando colocada nesse espaço de xingamento direto a figura da mulher. Enfim, diferentes análises que podem ser desdobradas pelos ouvintes.

“LaVaca” também propõe um outro olhar sobre o campo, cenário tantas vezes cantado na perspectiva de celebração, mas também de exploração. Clarissa foca em um local bastante real, o pampa, um bioma cada vez mais destruído. Por não ser uma vegetação com grandes árvores ou mata fechada, o bioma é muitas vezes lido como uma clara formação para a exploração rural e a produção agropecuária, porém cada vez mais esse bioma sofre diretamente com a extinção de espécies de flora e fauna, em um cenário de constante exploração e de pouco cuidado. Todo esse cenário de não-preservação é um dos fatores que influenciam nas complexas experiências climáticas que o estado tem enfrentado nos últimos anos, indo das recentes enchentes às repetidas e violentas secas enfrentadas pelo interior do Rio Grande do Sul.

Tudo isso movimenta as pesquisas e a arte de Clarissa, que transforma esse universo em canções complexas e instigantes dentro de “LaVaca”. O disco transita, tanto em sentido lírico quanto sonoro, por caminhos bastante não-óbvios. “A Vaca”, faixa de abertura, por exemplo, se apresenta de cara como uma espécie de samba, porém vai se desdobrando em um encontro de milonga com beats eletrônicos. E é esse jogo com o inesperado que a artista nos propõe. Do nada, em determinadas canções somos jogados em experiências de spoken word, como na própria “A Vaca” e na caudalosa “Flor Extinta”. Nessa jornada seremos levados por referências que se conectam com a MPB, porém também navegaremos por ritmos próprios do extremo sul, como o uruguaio candombe e a argentina chacarera.

Vale destacar aqui a conexão de Clarissa com Vitor Ramil na faixa “Pampa”, canção de caráter fortemente ecológico e que questiona a exploração e destruição do pampa, cenário constante da obra de Vitor e fundamental para a construção do que o artista chamaria de “A estética do frio” – ele possui um ensaio extremamente rico sobre o tema (conheça aqui). Vitor é essa figura extremamente interessante que dialoga com a cultura nativista gaúcha da mesma forma que a questiona, por isso é espécie de nome ambíguo perante seus pares locais e que nem sempre veem com bons olhos as experimentações sonoras e temáticas de Ramil. Clarissa, de alguma forma, expande essas explorações propostas por Vitor indo mais fundo ao inserir aqui uma perspectiva feminina que é extremamente rica. E junto dela traz uma gama de jovens e interessantes artistas gaúchos – mulheres e homens –, que também tem repensado a identidade gaúcha por perspectivas múltiplas. Clarissa apresenta um novo olhar sobre a gauchidade, mas traz ao seu lado diferentes nomes que propõem outros e outros olhares.

Quando pensamos nos temas explorados em “LaVaca”, Clarissa navega por canções autorais, mas também se aventura em diálogos interessantes com autores marcantes dessa diversidade gaúcha. “A Vaca”, por exemplo, parte da poesia de Mário Quintana, já “Churrascos” parte da poesia de Angélica Freitas – já musicada de forma magistral por Vitor Ramil. Na canção de Clarissa, dividida com a uruguaia Ana Prada, os geniais versos “os churrascos são de Marte / e as saladas são de Vênus” são também cantados em espanhol, mantendo ainda a ironia e sagacidade de Angélica, talvez a poeta mais inventiva e anárquica advinda dos pampas – pense, que ousadia de Angélica mexer no tão sagrado churrasco gaúcho e que ousadia maior de Clarissa de cantar isso. Ousadias maiores se encontram pelo final do disco, como em “Tiranas”, de autoria de Clarissa e Maria Gabriela Santana, que saúda as mulheres que fogem à norma.

Para fechar o disco temos “Chinaredo de Alpargata”, assina por Clarissa, Ana Matielo, Bel Medula, Brenda Billmann, Marília Kosby, Paola Matos e Pyetra Hermes, em uma ousadia que a artista classifica como um exercício de trabalhar com “palavras menos bonitas de estar numa canção”. Para esclarecimento, “china”, no RS, é uma palavra que se refere a prostituta; a etimologia da palavra tem divergências, mas podemos dizer que é uma palavra que inicialmente foi usada para se referir à mulher, e mais especificamente às mulheres indígenas e pobres, mas que hoje se entende como uma palavra chula para mulheres que exercem a prostituição ou que são vistas como “imorais”. Na canção ouvimos “as bruxa véia e as viada / as cadela e as vaca / chinaredo de alpargata”, em uma construção semântica que repete o falar coloquial gaúcho, com suas falhas gramaticais, porém em uma perspectiva lírica que congrega essas figuras marginalizadas e ignoradas numa espécie de música-bruxaria dessas figuras, com sua sonoridade festiva, como se o disco se fechasse em uma dança de figuras marginais em torno de uma fogueira – as eternas bruxas dentro de uma sociedade patriarcal.

De forma mais direta, “LaVaca” deve dialogar de forma clara com todas essas figuras outras que experienciaram a cultura gaúcha de diferentes formas, sejam pessoas que cresceram à margem dessa cultura ou mesmo migrantes que experimentaram a complexidade dessas relações. Porém, o trabalho artístico de Clarissa segue aquela máxima atribuída a Tolstói de que se deve começar falando sobre sua aldeia para ser universal, e no final das contas é bem isso, pois a artista se coloca geograficamente no pampa, porém cria canções que tocam diretamente pessoas em diferentes cenários geográficos, mas que são movimentados pelos mesmos questionamentos. Ouça com bastante atenção!

– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava. As fotos são de Vitória Proença.

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