texto de Gabriel Pinheiro
Tatiana Salem Levy começa seu novo romance com uma lembrança. Para ela – péssima com datas, nos diz – essa é sua primeira lembrança datada: 3 de dezembro de 1989. Poderia ter sido um dia como outro qualquer, um domingo de sol e piscina, ao lado da mãe e do padrasto. Uma Tatiana de ainda 10 anos, em início da puberdade, toma sol sem a parte de cima do biquíni. Imersa em pensamentos, sentada no chão, a jovem é surpreendida por um desenho. No traço do padrasto, o papel expõe uma menina sem rosto, de cabelo levemente encaracolado e os mamilos à mostra – eretos, há mais tinta de caneta ali, como se desenhados com força. Esse dia, “me perseguiu durante os anos que vieram mais tarde, e continua me perseguindo agora, enquanto escrevo”. “Melhor não contar” (2024) é um lançamento da Todavia Livros.
Aquele dia de dezembro marca o fim de um período na vida da narradora. O fim da inocência, talvez. A entrada brusca na vida adulta. Vida esta, enquanto mulher, exposta a regras sociais fortemente desenhadas a partir do olhar e do desejo masculino. Esta foi a primeira, mas não será a última, experiência de abuso na relação com o padrasto – vale ressaltar, um famoso cineasta, figura-chave do cinema brasileiro no século passado. Do olhar, esse assédio passará por ligações, aproximações inoportunas e toques não consentidos. Um acúmulo de traumas que se sedimentam uns sobre os outros.
“Melhor não contar” é corajosamente autobiográfico. O título é paradoxal. “Melhor não contar” foi o conselho que Tatiana Salem Levy ouviu repetidamente de amigos e amigas, ex-companheiros, da terapeuta da mãe, quando buscava um conselho: deveria ou não contar para a mãe os abusos sofridos? Se seguiu o conselho até a morte da mãe, vítima de um câncer precoce e doloroso, Tatiana encontra no texto escrito uma maneira de contar. E como ela conta. O livro é um mergulho em todo esse processo de abuso e assédio e nos efeitos no seu desenvolvimento enquanto mulher, enquanto filha, enquanto companheira, enquanto escritora.
Tatiana segue diferentes linhas narrativas – que não seguem paralelas, sem que uma toque a outra, mas criando curvas e conexões, influenciando umas às outras de maneira inevitável. Assim, na medida em que ela reconstrói essa relação abusiva com o padrasto, ela também desenha um retrato delicado e emocionante da figura materna – uma jornalista bem sucedida, a primeira mulher brasileira a cobrir uma guerra no exterior – e da doença que a levou e, ainda, reflete sobre a própria escrita, inserindo-a dentro de um contexto maior, político e social, que insere a literatura feminina dentro de uma noção de escrita do eu, fortemente calcada na escrita de diários.
Este gesto, do micro ao macro, do que é íntimo para um contexto social mais amplo, aproxima o texto de Salem do projeto literário da francesa Annie Ernaux. “Melhor não contar” é como um romance-ensaio, no qual a autora alia a experiência pessoal à uma análise da sociedade e da literatura escrita por mulheres desde tempos passados. São muitas as referências que ela traz aqui, de autoras e textos – a própria Annie Ernaux, a britânica Virginia Woolf. Em comum a muitas dessas autoras, Tatiana descortina experiências traumáticas de abuso e violência patriarcal.
Em tempos em que o corpo feminino segue sendo alvo primordial do conservadorismo – a PL do Aborto está aí, para não nos deixar esquecer – Tatiana Salem Levy compartilha com o leitor sua experiência de aborto. Não no Brasil, mas em Portugal, país em ele é legalizado, por meio do sistema público, com os cuidados e o apoio necessário por parte governamental. O que parecia, a início, ser simples, se mostra mais complicado e doloroso: o desconforto e o distanciamento do antigo companheiro ao longo deste processo – marcado pelo sangue que insiste em ser expelido do corpo, repetidamente – joga a autora/personagem noutra experiência traumática na relação com o masculino, no papel social do homem dentro de uma sociedade patriarcal.
“Melhor não contar” é um texto corajoso, cru e profundamente literário. No contato entre o íntimo e o público, entre o dito e o não-dito, Tatiana Salem Levy faz da escrita de si um objeto de observação social poderoso. Ainda bem que a autora contou, apesar de todos os conselhos contrários ouvidos ao longo dos anos, sentimentos e lembranças guardadas durante tanto tempo. Desde já, um dos lançamentos mais importantes da literatura brasileira neste ano.
– Gabriel Pinheiro é jornalista. Escreve sobre suas leituras também no Instagram: @tgpgabriel.