texto de João Paulo Barreto
De vez em quando surge um sopro de originalidade que traz esperança ao calejado cinema de gênero de horror. Para espectadores assíduos de tudo o que estreia de modo legendado no circuito comercial, o garimpo de pepitas é árduo. No entanto, quando nos deparamos com o brilho que um cinema de baixo orçamento é capaz de gerar em um perceptível cenário de pouca grana no qual a originalidade se sobressai de maneira visual e textual, é impossível não demonstrar o prazer de se ver diante de algo cativante em sua proposta.
“Entrevista com o Demônio” (“Late Night with the Devil”, 2024) cumpre com exatidão esse propósito ao criar, através de um único cenário e uma ideia analítica da mídia em sua nociva presença de terror, uma obra enxuta de 90 minutos que dá ao espectador arrepios e uma densa reflexão sobre a gana doentia por sucesso e suas consequências. Tudo isso embalado por uma atmosfera de terror que prima não pelo sanguinolento em sustos fáceis, mas pelo crescente do caos que surge quando a loucura advinda do desconhecido passa a imperar.
Na trama, o carismático, porém decadente, apresentador de talk show, Jack Delroy (David Dastmalchian, cada vez mais a vontade em assumir sua aparência excêntrica refletida em seus papéis) retorna ao seu posto de trabalho após um período de luto por conta da perda de sua esposa para um câncer de pulmão incomum em uma pessoa não fumante. Na sua volta à TV, uma pauta do programa destinada a um livro de abordagem satanista, juntamente a outros convidados cujas áreas de atuação complementam e questionam o tema, criam um embate entre crença, descrença, ironia e sarcasmo.
No entanto, dentro da citada construção catártica de sua história, o filme escrito e dirigido pelos irmãos Cameron e Colin Cairnes logo faz valer o fato de que qualquer traço irônico e sarcástico de seus personagens diante das forças que se apresentarão nos breves 90 minutos de duração cairá por terra na escolha de abraçar o bizarro.
Conscientes da proposta de recriação de um programa de TV de quase cinquenta anos atrás, Cameron e Colin mantêm sua direção conjunta em enquadramentos que emulam justamente a construção cênica de um modo de transmissão televisiva da década de 1970, o que dá ao filme um aspecto quase documental. E tal proposta só é quebrada justamente por imagens de bastidores que, acertadamente, são fotografadas em preto e branco.
Juntamente a isso, a tela em seu formato 4×3 e a qualidade (ou ausência dela) da imagem captam exatamente o ambiente de tal cenário setentista que denota de maneira exata o período. Somado a isso, claro, o figurino de seus personagens que surgem como convidados do programa de auditório ao vivo captura para o filme a atmosfera que referencia obras clássicas do período, como “A Profecia” (1976) e, de modo mais óbvio, mas não menos impactante, “O Exorcista” (1973).
E se é possível citar a obra pilar de William Friedkin aqui, isso se dá não somente pela previsibilidade de sua lembrança ao assistir a “Entrevista com o Demônio”, com as citações a pescoços girando ou à fala clássica sobre o poder de Cristo compelir alguém, mas, também, por perceber o tesouro narrativo e metalinguístico que surpreende o espectador atento em sua proposta misturar dois tipos de mídia, a de TV e a de Cinema.
Em certo momento decisivo, uma das personagens flutua em uma cadeira que, diante da possibilidade de estar sendo suspensa por cabos, nos faz questionar se toda aquela suposta possessão demoníaca não se trata de um golpe para se conseguir audiência. E é justamente o que chama a atenção nessa ideia de metalinguagem. A possível enganação seria destinada à audiência do programa ao vivo e aos presentes no estúdio. Mas, para nós espectadores do filme, trata-se de algo real dentro da proposta de seu roteiro. No entanto, ainda assim, um truque cinematográfico com cabos a nos manipular como audiência.
As possibilidades de avaliação são muitas nesse sentido. Para o cinéfilo sofrido a garimpar pepitas, causa regozijo encontrar algo com tamanha quantidade de possibilidades de avaliação, camadas de análise e, claro, arrepios.
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– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde, de Salvador.