entrevista de João Paulo Barreto
Exibido na edição 2024 da CineOP – Mostra de Cinema de Ouro Preto, o curta-metragem baiano “Menina Espoleta e os Super-Heróis Secretos”, baseado no lúdico, belo e triste quadrinho nacional “Duo.Tone”, escrito e desenhado por Vitor Cafaggi, e lançado pela Editora Conrad em 2020, é um daqueles filmes a nos transportar a um lugar onde a simplicidade de um tempo mais leve impera. Dentro de uma premissa que coloca a infância como esse ponto de criação de lembranças que servirão de pilares para os dias sombrios da fase adulta, o curta dirigido por Paula Lice, Pedro Perazzo e Taís Bichara,capta a ideia da fantasia infantil exatamente como esse porto seguro para o qual voltaremos.
O filme, no entanto, não se baseia em uma ideia melancólica de nostalgia, mas, sim, retrata a infância e seus sonhos como uma fase a ser vivida de modo pleno, alimentando sonhos, brincadeiras e fantasias. Na história, a pequena Lilica (a talentosa Lilica Rocha), menina com imaginação fértil a criar super-heróis e aventuras ao lado do seu cachorro Lobinho, está de mudança do campo para a cidade. Essa alteração vai gerar conflitos na mente criativa da pequenina, levando-a a uma maturidade diante dos traumas que aquela ida para a metrópole vai lhe acarretar.
Os cineastas, em entrevista ao Scream & Yell, falaram sobre a construção visual destes dois ambientes, sendo o campo calcado no caloroso e tenro tom infantil, e a cidade em um aspecto mais frio. “Desde o princípio a gente tinha consciência que queria fazer um filme infantil, então as escolhas sempre foram norteadas por isso. As cores das roupas, a capa feita de toalha de banho, os personagens de sucata, os desenhos, tudo leva pro lúdico, coisas que pudessem ser feitas pela própria criança, isso era importante pro universo dela no sítio”, explica o co-diretor Pedro Perazzo. “Na cidade, é diferente, é um universo dos adultos, o apartamento, piso, móveis, não tem nada dela ainda ali”, complementa.
A co-diretora Paula Lice destaca as diferenças entre os dois ambientes a gerar esse choque perceptível ao espectador. “O contraste campo/cidade era importante de ser ressaltado, porque enuncia a própria dificuldade da menina em sair do conhecido para o desconhecido. A mudança desloca o ambiente, mas, ao final, o imaginário nos acompanha onde quer que a gente vá”, frisa.
Para Taís Bichara, essa diferenciação foi algo atrelado ao material de origem, o quadrinho “Duo.Tone”. Mas o curta metragem acabou por ganhar uma identidade própria. “Hoje, olho pro filme pronto e gosto especialmente de ver uma criança brincando com coisas que ela mesma criou, tanto na imaginação quanto com as próprias mãos. Gosto de ver que ela tem um ritmo próprio para processar as emoções dela, sem ser atropelada. E que isso é amparado pela família, mas é alicerçado pelo que ela mesma criou para ela nessa vivência à parte de um centro urbano mais impositivo”, salienta.
Em sua mistura de entre animação e live action, o filme capta com precisão a essência de sua origem na história em quadrinhos. No entanto, o faz sem evidenciar a tristeza latente que funciona tão bem nas páginas da HQ. Aqui, uma alegria se faz necessária. E ela acaba por se encontrar no carisma de sua protagonista, a pequena Lilica Rocha.
Neste papo com o Scream & Yell, Paula, Pedro e Bichara aprofundam esse processo de adaptação e criação. Confira!
Há sempre uma dificuldade na direção de atores infantis, sobre encontrar tons, sobre a necessidade de se decorar falar, e outros aspectos que a direção exige. Lembro do lançamento de “O Menino de Gamboa”, quando Luna e Pedro falaram comigo sobre esse aspecto na produção do curta. Como foi este mesmo processo com Lilica Rocha?
Pedro Perazzo: Paula foi preparadora de elenco em “Menino da Gamboa” e codiretora agora, nos dois casos foi uma presença fundamental pra esse processo com as crianças. Mas, entre “Menina Espoleta” e “Menino da Gamboa” há uma diferença grande porque enquanto em Gamboa os meninos nunca tinham tido nenhuma experiência, Lilica Rocha já tinha feito muita coisa artística, seja atuando ou na carreira musical dela.
Paula Lice: Lilica Rocha já era uma artista admirada por nós e quando chegou, nosso trabalho foi muito mais de alinhar com ela o tom desejado para a cena, sabendo que ela já tinha talento, carisma e muita experiência com música, vídeo, cena. Fomos descobrindo os desafios e ajustando o que queríamos dela. O pai dela, o ator Leo Rocha, foi fundamental nesse processo, também atuando no filme e estando próximo a nós, muito parceiro neste processo. Ela é realmente uma criança maravilhosa!
Quais foram os desafios na escrita do roteiro baseado no quadrinho de Vitor Cafaggi? Ficou muita coisa de fora ou conseguiu utilizar muito do material original?
Pedro Perazzo: Muita coisa ficou fora, seja por questões narrativas ou orçamentárias. Pro filme, o roteiro se concentrou no dilema principal da personagem, na questão da amizade, e aí naturalmente a narrativa foi ficando mais enxuta, até pela natureza do projeto que é um curta-metragem infantil, não queríamos um filme muito longo.
Neste processo de escrita, como se deram as escolhas na direção e direção de arte em relação a encontrar um caminho voltado para o lúdico com a utilização do campo como um lugar mais caloroso em equiparação a trazer a cidade e o apartamento como um lugar mais frio?
Pedro Perazzo: Desde o princípio a gente tinha consciência que queria fazer um filme infantil, então as escolhas sempre foram norteadas por isso. As cores das roupas, a capa feita de toalha de banho, os personagens de sucata, os desenhos, tudo leva pro lúdico, coisas que pudessem ser feitas pela própria criança, isso era importante pro universo dela no sítio. Na cidade, é diferente, é um universo dos adultos, o apartamento, piso, móveis, não tem nada dela ainda ali.
Paula Lice: O contraste campo/cidade era importante de ser ressaltado, porque enuncia a própria dificuldade da menina em sair do conhecido para o desconhecido. A mudança desloca o ambiente, mas, ao final, o imaginário nos acompanha onde quer que a gente vá.
Taís Bichara: Acho que isso é uma coisa que veio da HQ e estava clara no roteiro também. Mas hoje olho pro filme pronto e gosto especialmente de ver uma criança brincando com coisas que ela mesma criou, tanto na imaginação quanto com as próprias mãos. Gosto de ver que ela tem um ritmo próprio para processar as emoções dela, sem ser atropelada. E que isso é amparado pela família, mas é alicerçado pelo que ela mesma criou para ela nessa vivência à parte de um centro urbano mais impositivo.
Como foi o processo de animação junto ao Mateus DiMambro? Houve muita inspiração no traço do Cafaggi ou uma o caminho foi uma busca por uma identidade visual própria para o curta?
Pedro Perazzo: Foi um processo muito tranquilo, Mateus acertou muito rápido o que a gente buscava. A gente passou pra ele a HQ original, mas também outras referências que a gente queria pra animação, ele também apresentou várias coisas, até pra gente entender o que era possível com nosso tempo e verba. Desde o início queríamos um estilo de páginas de quadrinhos pra animação, mas deixamos ele livre pra criar com o traço dele.
Paula Lice: Mateus além de muito talentoso e eficiente, tem noção de todas as etapas que uma animação precisa para ser desenvolvida, então fomos ajustando as demandas ao orçamento e ao tempo, mas só funcionou porque ele é um artista que vai do storyboard à direção de animação.
Taís Bichara: Acho que nós três ficamos felizes de cara tanto com o método de trabalho que Mateus propôs quanto com o que ele construiu nas ilustrações. Fazer cinema com baixo orçamento é um desafio e animação é um desafio duplo. Então foi muito especial ter um resultado que foi além do possível e do satisfatório. Somos apaixonados de verdade pelo que ele criou pro filme!
A adaptação com um nome diferente do material original foi uma das escolhas que denotaram essa busca?
Pedro Perazzo: A HQ original conta a história de um garoto, mas quando vi Lilica numa reportagem na TV, a vontade de trabalhar com ela foi muito grande e mudamos a personagem no curta para uma menina. O título sempre seria diferente, porque o original (“Duo.Tone”) é pouco específico pra essa história, é uma HQ que traz duas histórias independentes. Como o aspecto lúdico da imaginação dela com os heróis é o que simboliza a jornada dela, quisemos registrar isso no título do filme.
Taís Bichara: Acho que o título acaba sendo um reflexo do que foi o processo desse filme. Surgiu de uma adaptação, mas a nossa história, o jeitinho dessa personagem e o universo dela foram se construindo também ao redor da própria Lilica, de como ela enxergou a história.
E a divisão da função de direção? Paula já havia tido essa experiência ao lado de Ronei Jorge e Luna. Como foi esse encontro de mentes entre vocês, Bichara, Pedro e Paula em relação a encontrar essa sintonia e a divisão de funções?
Pedro Perazzo: Foi uma evolução natural no nosso processo de pensar esse filme. O projeto começou comigo, que tinha escrito o roteiro, com Bichara desde o início muito próxima, ela conhecia muito essa história, o trabalho de Vitor Cafaggi. Paula sempre esteve envolvida também por conta do elenco infantil. As seguidas ondas de COVID fizeram a gente adiar as filmagens algumas vezes e nesse processo o nosso trabalho junto foi se amalgamando de um jeito que, quando as filmagens finalmente aconteceram, já estávamos dirigindo juntos.
Taís Bichara: A ideia inicial era Pedro dirigir sozinho e eu estava no projeto desde o início, anos atrás. Mas com as ondas de COVID e uma mudança de país no meio do processo, acabamos chamando Paula e virando um trio. O que veio da necessidade acho que acabou se tornando uma das coisas mais legais do processo, que foi criar junto, cada um trazendo uma força complementar. Acho que fomos nossa própria equipe de super-heróis secretos (risos).
– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde, de Salvador.