texto de João Paulo Barreto
“Depois da Chuva” (2013), longa de estreia dos cineastas Cláudio Marques e Marília Hughes, é um filme que não busca se exceder em sua mensagem. São enxutos 90 minutos de uma história onde a tragicidade e a desesperança refletem o tom de uma época na qual estes dois elementos tomaram lugar de qualquer bom sentimento de fé que seus personagens pudessem ter em suas vidas. É um filme que não busca dar ao espectador uma redenção antes dos créditos finais subirem. Ao final, torna-se um trabalho questionador que oferece ao seu público a oportunidade de refletir sobre o Brasil de modo seco, sem discursos hipócritas ou falsa retórica. É um trabalho cujo teor político apresenta perguntas simples que, se respondidas de modo satisfatório na época em se passa sua história, talvez esses 30 anos que a separam do momento em que a revisitamos tivessem feito alguma diferença significativa para o país.
O roteiro acompanha Caio, adolescente secundarista e questionador em sua rotina escolar e social durante o final da ditadura militar em 1984. Poucas amizades. Os únicos amigos que tem não fazem parte do seu circulo estudantil, mas, sim, de sua formação intelectual fora dos muros de restrição mental daquele colégio baiano. Tales e Sara, casal de ideias anarquistas e locutores de uma rádio pirata, são os responsáveis pela formação intelectual do jovem. É Tales quem resolve levar ao público no jornal feito em mimeógrafo, Inimigos do Rei, o texto de Caio acerca da “demencracia” que o Brasil está entrando. Texto esse censurado com um zero na prova de redação do aluno.
Apesar de visto como modelo a ser seguido por Caio, Tales acaba por representar bem mais do que isso. O rapaz de vinte e poucos anos é a imagem de uma geração que cresceu tendo qualquer pensamento livre rechaçado pela cultura do baixar a cabeça. Ele sabe que toda aquela falsa euforia não nos valerá de nada. É a percepção de alguém que nasceu dentro daquele regime vexatório e que, apesar de lutar contra ele, tem em seu intimo a ideia de que não pode vencê-lo. É em Caio que o rebelde Tales deposita sua fé de continuidade de um pensamento contestador. E é nos passos de Tales que Caio mantém sua concepção do que é certo. Concepção essa que começa a ruir ao notar as atitudes um tanto radicais demais do primeiro.
A tragicidade de Tales é estampada de forma melancólica no olhar do rapaz. Construída de modo a esconder sua agressividade e descontentamento em um nível logo na superfície de qualquer acesso de fúria, a atuação de Talis Castro consegue ser contida, sem excessos, algo que rima muito bem com a ideia de desesperança do roteiro de Cláudio Marques. Os olhos tristes e postura cabisbaixa dizem tudo. O jovem sabe que suas utopias não terão um futuro. E quando o vemos apresentar uma arma a seu pupilo, imaginamos que aquela pista representará algo de trágico na vida dos dois. Mas essa tragédia vem de um modo muito mais convincente, de acordo com o inconformismo daqueles seres e com a sutileza do filme. Presos em uma realidade que prega a esperança, a vontade de fugir sem precisar encarar a desilusão que se anuncia acaba falando mais alto na vida de Tales.
E tudo isso, claro, se reflete de forma traumática na trajetória do adolescente Caio, que precisa lidar com a ausência do pai a afetar seriamente a sanidade de Sônia, sua mãe, o que acaba por tornar uma ilusão qualquer possibilidade de conforto e equilíbrio supostamente encontrado na figura materna. Obrigado a escutar perguntas oriundas do desespero da solidão (Você ama mais a mim ou a seu pai, filho?), a catarse para onde caminha a vida do adolescente se mistura à desesperança daquele tempo. Quando as lágrimas da perda vêm, Caio já está em um caminho sem volta para a desilusão. A mesma pregada por Tales, ao dizer que o jovem se vendeu ao sistema e a percebida pelo garoto ao notar as intenções de lucro fácil por trás de uma eleição de grêmio estudantil.
A Salvador de “Depois da Chuva” difere de qualquer estereotipo já visto. É uma cidade que, sob a fotografia de Ivo Lopes Araújo (“O Céu sobre os Ombros”, “Tatuagem”), parece fria, uma metrópole localizada não nos trópicos, mas, sim, em algum lugar onde o clima torna as pessoas melancólicas e silenciosas. Depois da Chuva é um filme de sonhos destruídos e pouca esperança. Mas essa pouca que fica acende alguma mínima fé em dias melhores. Se eles virão, é uma questão a se mesclar à pergunta de Sônia na última fala do filme.
A sua pergunta final ao testemunhar a TV exibir a morte de Tancredo Neves e a ascensão do lambe botas, José Sarney, à Presidência da República é uma que nos fazemos até hoje, trinta anos depois daquele melancólico e frio 1984 baiano.
Se já temos resposta? Triste questionamento…
– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde, de Salvador.