texto de Renan Guerra
O ator e diretor francês Pierre Barouh (1934/2016) teve uma longa história de amor com o Brasil, especialmente com o samba. Ainda nos anos 1950, Barouh conheceu Sivuca em Lisboa e através dele acabou se conectado com outros músicos brasileiros que estavam na Europa, como Baden Powell e Vinicius de Moraes. Na década de 1960, o ator veio ao Brasil para participar de “Arrastão” (1967), filme franco-brasileiro de Antoine d’Ormesson, traduzindo para o francês “Samba da Bênção”, letra de Vinicius musicada por Baden – a faixa foi gravada por Pierre ao lado de Milton Banana e Oscar Castro Neves e depois, como “Samba Saravah“, acabou na trilha de “Um Homem, Uma Mulher”, clássico de Claude Lelouch premiado em Cannes, em 1966, e com o próprio Pierre como protagonista. Em 1969, ele voltaria ao Brasil a convite do cineasta francês Pierre Kast para acompanhar as filmagens sobre candomblé na Bahia e no Rio, porém as sequências previstas para a capital carioca não deram certo, e Kast ofereceu sua equipe e material para que Barouh filmasse o que quisesse. Com todos os seus contatos, o artista reuniu “alguns artistas” e gravou, meio que de improviso, o documentário “Saravah”.
Filmado de forma rápida em 1969, “Saravah” foi lançado em festivais a partir de 1972, porém nunca chegou a ser exibido comercialmente, ficando restrito a exibições especiais em mostras, festivais e sessões privadas em casas de amigos. Nos anos 2000, o filme ganhou edições em DVD em países como França e Japão e só chegou ao Brasil em 2005, via Biscoito Fino – este DVD nacional pode ser encontrado com certa facilidade em sites de revenda como Shopee e Mercado Livre. Porém, nos últimos anos, Benjamin Barouh, filho de Pierre e diretor da produtora Editions Saravah, encontrou a fita original do filme, que estava guardada nos arquivos da produtora. Com a ajuda do Centro Nacional do Cinema Francês, Benjamin conseguiu fazer a restauração do filme em 4K, num trabalho que acentuou aspectos como profundidade e realçou cores antes desbotadas, bem como melhorou a qualidade e a nitidez do som das canções.
Para explicarmos a importância desse filme é fundamental citar os nomes que Barouh registra aqui: Baden Powell é uma espécie de estrela principal, que ainda acompanha os então octogenários Pixinguinha e João da Baiana e os jovenzinhos Paulinho da Viola e Maria Bethânia – ele com 26, ela com 22 anos na época das gravações. “Saravah”, de forma descompromissada, acaba fazendo um registro fundamental de diferentes gerações da música brasileira, todos artistas de primeira grandeza, que aqui são captados tanto em suas potencialidades criativas quanto em momentos banais, de simplicidade latente.
Você já deve ter se deparado com um dos trechos mais conhecidos do filme, que regularmente ganha atenção nas redes sociais (muitas vezes sem crédito ou fonte), em que Paulinho da Viola e Maria Bethânia bebem cerveja em uma mesa de boteco enquanto cantam e tocam violão. Esse trecho, com toda a qualidade da nova restauração, valoriza detalhes deliciosos da produção, como as conversas paralelas feitas ao pé do ouvido, os cigarros que são fumados ou mesmo o trabalho cuidadoso de uma jovem Bethânia reabastecendo os copos de cerveja vazios que estavam pela mesa.
Os momentos de simplicidade são acompanhados de momentos de grandiosidade quase imensurável, como poder ver Pixinguinha tocando ao lado de Baden Powell ao violão, sob o olhar atento de João da Baiana. Ou ainda ver João, com seu perfeito terno branco e seu brilhante sapato, sambando miudinho enquanto toca seu histórico prato e faca – itens que, inclusive, hoje em dia podem ser vistos no Museu da Imagem e do Som no Rio de Janeiro. Dentre esses muitos registros, vale destacar as muitas formas com que Baden Powell toca seu violão e canta enquanto segura seu cigarro entre os dedos ou entre os lábios. Todos esses momentos formam um retrato muito rico de um momento único da música brasileira, do samba e de artistas que modificaram e modificariam a forma de se pensar a nossa musicalidade.
Exibido em algumas sessões na Europa, a exibição do filme restaurado por aqui no In-Edit é um importante marco de retorno dessas imagens para o solo brasileiro. Há uma previsão de que o filme ganhe um lançamento comercial nas salas de cinema brasileiras ainda em 2024 e torcemos para que isso se concretize, pois “Saravah” é absolutamente essencial. Ao final do filme, depois de sermos presenteados por todas aquelas imagens e sons, a sensação é só uma: que maravilha poder ser brasileiro!
Próxima sessão de “Saravah” no In-Edit Brasil 2024
Segunda, 24/6 | 20h30 | CineSesc
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava.