Cinema: “A Mensageira”, de Cláudio Marques, e as engrenagens manchadas de sangue de uma metrópole

texto de João Paulo Barreto

Há onze anos, no texto sobre “Depois da Chuva”, longa metragem de estreia dos cineastas Cláudio Marques e Marília Hughes, este escriba pontuou o seguinte sobre a cidade de Salvador, cenário da história oitentista de descobertas e decepções adolescentes em um Brasil desesperançoso que tentava escapar do sufocamento ditatorial.

“A Salvador de ‘Depois da Chuva’ difere de qualquer estereotipo já visto. É uma cidade que, sob a fotografia de Ivo Lopes Araújo (‘O Céu sobre os Ombros’, ‘Tatuagem’), parece fria, uma metrópole localizada não nos trópicos, mas, sim, em algum lugar onde o clima torna as pessoas melancólicas e silenciosas. ‘Depois da Chuva’ é um filme de sonhos destruídos e pouca esperança”.

Mais de uma década depois e mais três longas metragens no currículo, o diretor Cláudio Marques retorna, com “A Mensageira” (2024) , a uma Salvador ainda mais fria. Dessa vez, no entanto, essa sensação inóspita pesa junto a um sufocamento que advém de uma acertada opção pela fotografia em preto e branco de Flávio Rebouças a colocar a cidade como esse local distante da clichê romantização de um lugar caloroso e solar.

Junto a essa opção surge uma razão de aspecto de tela no formato 4×3 que pontua a presença de seus atores em cena de maneira a fazê-los se sentir e demonstrar-se sufocados. A violência oriunda da corrupção de um sistema judiciário apodrecido e uma impotência que restringe qualquer ímpeto de reação e luta colabora com essa incômoda inércia.

“A Mensageira”, presente na Mostra Competitiva Brasileira do festival Olhar de Cinema – Curitiba IFF 2024, destoa bastante em ritmo de direção, opções de enquadramentos e movimentos de câmera, bem como em sua montagem parcimoniosa (assinada ao lado do cineasta português João Salaviza) dos outros trabalhos de Marques. E isso dá ao filme uma cadência própria, que leva seus personagens à frente em uma luta que parece perdida, mas não peca por deixar de ser ferrenha.

Na figura principal de Iris (Clara Paixão), a mensageira do título, está uma oficial de justiça que se vê presa a um emaranhado corrupto dentro do judiciário soteropolitano, no qual grana e interesses escusos da especulação imobiliária entram em choque com a luta de uma população pelo direito de moradia. A salientar esse conflito interno de Iris, a Direção de Arte assinada por Moacyr Gramacho, que desenha o ambiente interno do Fórum Ruy Barbosa justamente em um aspecto de aspereza, parece retirar o pouco de vida que resta na jovem em sua almejada profissão. Como contraste, o calor que ela encontra no ambiente familiar, ao poder encontrar o abraço do irmão (Heraldo de Deus) e seu pai (Luiz Pepeu), desenha bem essa rima visual. No citado conflito interno, Iris se vê na injusta posição de vilã, uma vez que são cidadãos negros, assim como ela, as maiores vitimas dessa sana.

Um desses cidadãos, Anderson (vivido pelo ativista Hamilton Borges, em presença austera) é quem leva Iris a questionar se seu trabalho possui, de fato, o aspecto de isenção de uma responsabilidade de quem está apenas “cumprindo ordens”. Em um diálogo intenso dentro de um carro, o homem direciona à jovem as reflexões exatas que uma vida de luta lhe trouxe em sua sagacidade. Iris, a partir de um chocante acontecimento, passa a buscar em suas próprias raízes religiosas, ancestrais e familiares essa auto-análise dentro de uma ideia de pertencimento.

“A Mensageira” apresenta esse modo de refletir uma cidade, seu povo e as engrenagens de um sistema corrupto e opressor que o esmaga. Porém, a leveza de sua redenção ecoa mais forte quando os créditos finais sobem.

– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde, de Salvador. 

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