Cinema: Estreando na Netflix, “Godzilla Minus One” se sobressai focando na essência do trauma humano

texto de Davi Caro

Não devem ter sido poucos aqueles que se surpreenderam quando, na badalada cerimônia mais recente do Oscar, a estatueta de Melhores Efeitos Visuais escapou das mãos de blockbusters com orçamentos milionários e pertencentes a franquias mais do que bem estabelecidas – como “Guardiões da Galáxia, Vol 3” ou o último longa da série “Missão: Impossível” – para ir parar nas mãos de um filme de monstros, produzido no Japão, com exibições limitadíssimas ao longo das Américas do Norte e do Sul. Isso é, não levando em consideração alguns fatores: primeiro, o fato de tal produção carregar o nome de uma das mais rentáveis e longevas franquias cinematográficas de todos os tempos; segundo, a coexistência de uma outra franquia, produzida do outro lado do mundo, que andou obtendo resultados cada vez mais decepcionantes nos últimos anos; e terceiro (e mais importante), a feliz coincidência de o tal “filme de monstros” (ou “kaiju”) ser simplesmente um dos mais bem feitos em toda a história do gênero.

Tudo isso poderia servir para convencer mesmo os mais céticos a darem uma chance a “Godzilla Minus One” (2023), que figurou entre os mais bem cotados e aclamados do ano passado em meio a crítica especializada. No entanto, parece pouco para descrever um filme que vai muito além da gigantesca criatura atômica a figurar no título. Recentemente incluído no catálogo da Netflix Brasil após uma agenda de exibição relativamente limitada no grande circuito comercial, o longa dirigido por Takashi Yamazaki – o segundo produzido pela produtora Toho, que retornou ao gênero em “Shin Godzilla” (2016) depois de um hiato de mais de 10 anos – pode enfim alcançar uma audiência maior e, talvez, redefinir a importância de seu personagem principal e sua relevância junto ao cinema moderno justamente por centrar foco naqueles que, via de regra, são os coadjuvantes tradicionais em produções deste tipo: os humanos, vitimizados pela catástrofe resultante da ira destas criaturas que, através de sua arrogância, eles mesmos criaram.

Este foco fica mais claro desde os momentos iniciais do filme, mostrando o piloto kamikaze Koichi Shikishima (Ryunosuke Kamiki) conforme este deserta sua função letal e procura abrigo em uma ilha de reabastecimento, apenas para testemunhar em primeira mão o impulso destrutivo do monstro, conforme este emerge do oceano. Paralisado pelo mesmo medo que o impediu de servir a seu país com sua vida, o agora sobrevivente consegue enfim retornar a sua cidade natal, apenas para encontrar uma Tóquio devastada por bombardeios e com cidadãos tentando, a duras penas, se recuperar. Encarando a perda de seus familiares, ocorrida em sua ausência, Shikishima acaba dando abrigo à jovem Noriko Oishi (Minami Hamabe), que tomou para si cuidar da pequena Akiko (Sae Nagatani), tornada órfã graças ao conflito bélico. A relação entre o casal, a princípio um impulso motivado pela obrigação em cuidar da menina abandonada, acaba evoluindo para uma forma relutante, porém cada vez mais inegável, de afeto, conforme o piloto arruma um emprego como parte de um grupo destinado a detonar bombas marítimas remanescentes da guerra. A reestruturação da capital japonesa, bem como da vida conjunta da jovem família, porém, é novamente desafiada com o ressurgimento de Godzilla, e o kamikaze desertor se vê mais uma vez forçado a confrontar seu stress pós-traumático, bem como alguns novos traumas, a fim de preservar a si mesmo, bem como a seu país.

É preciso dizer que “Godzilla Minus One” faz por merecer a premiação conquistada nos Oscars: não que os efeitos especiais sejam necessariamente revolucionários em um sentido mais tradicional – longe disso, a produção pode, em alguns (poucos) momentos, parecer artificial demais para aqueles acostumados com os espetáculos imersivos de James Cameron, por exemplo. No entanto, é importante considerar que cerca de um quarto do orçamento do filme (totalizado em aproximadamente 12 milhões de Dólares) foi dedicado à criação dos efeitos computadorizados, que não deixam de ser impressionantes ao longo da maior parte do longa. Contrastando com produções semelhantes (o último filme americano a contar com o personagem título, “Godzilla x Kong: O Novo Império”, teve um custo mais de 10 vezes maior, com resultados bastante aquém dos vistos aqui), o trabalho do também diretor Yamazaki, por si só, já faz valer a investida. A combinação com a trilha sonora cuidadosamente pensada para ser retrô, sem soar ultrapassada – inclusive incorporando o tema clássico do monstro – evoca o imortal e ainda relevante primeiro filme da franquia, de 1954, e ajuda a construir um universo imersivo e sublime.

Contribui, e muito, para a construção de tal universo a presença de protagonistas realmente marcantes e instigantes: o duo de personagens centrais formado por Kamiki e Hamabe surpreende por sua complexidade elusiva, onde muito se diz por meio de olhares e ações que os diálogos apenas servem para complementar. Da parte dos coadjuvantes, se sobressaem o mecânico Tachibana (interpretado por Munetaka Aoki), outro sobrevivente do ataque inicial de Godzilla, e o trio de colegas que acompanham Shikishima em suas missões em alto mar (vividos por Yuki Yamada, Kuranosuke Sasaki, e um impressionante Hidetaka Yoshioka), enfatizando o elemento humano por vezes tão perdido em meio a batalhas entre monstros gigantes e paisagens destroçadas – em suma, trazendo o principal diferencial da produção. Evitando exposições de enredo forçadas em favor de passagens dramáticas, intercaladas com sensíveis momentos de bom humor, o roteiro explora muito bem o impacto da destruição, estrutural e civilizatória, que tem na criatura atômica (chamada, no original, de “Gojira”) seu principal avatar. Não hesitar em relacionar a existência da criatura aos testes com bombas nucleares, bem como a preferência por ambientar a trama imediatamente após a rendição japonesa, são alguns dos êxitos do filme (também vale citar que o “Minus One” do título tem ligação direta com o fim da Segunda Guerra, que teria reduzido o país à estaca zero; a existência e eventual devastação de Godzilla, portanto, reduz o Japão a uma escala negativa, tamanha a destruição resultante).

Com o alto nível de aclamação destinado ao filme, mesmo antes da vitória na cerimônia estadunidense, não é difícil imaginar que o mundo será, em algum momento do futuro próximo, agraciado com uma sequência para “Godzilla Minus One”. A julgar pelo nível de esmero e cuidado dispostos aqui, criar esperanças por um novo filme tão marcante quanto este se torna tarefa fácil – tão fácil, aliás, quanto perder qualquer entusiasmo restante na franquia ainda mantida pela Legendary Pictures no ocidente, que, com suas produções realizadas a toque de caixa, com tramas tão rasas quanto um pires e desenvolvimentos risíveis, não faz jus às produções nipônicas. Que os executivos americanos possam olhar para aqueles que detém a expertise no que diz respeito aos filmes do gênero: a lição está, afinal, não em centrar foco nas gigantescas criaturas, ou no caos que causam, e sim no elemento humano de seus criadores, algozes e, frequentemente, principais vítimas.

– Davi Caro é professor, tradutor, músico, escritor e estudante de Jornalismo. Leia outros textos de Davi aqui.

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