texto de Davi Caro
É inegável que um talento como o de Amy Winehouse surge talvez uma vez a cada geração, seja no primor de sua arte, seja na característica meteórica de sua jornada. Afinal, o mundo sucumbiu a uma onda de luto inevitável quando as notícias de sua morte, em julho de 2011, tomaram de assalto os principais meios de comunicação. Não que fosse algo totalmente inesperado: seu histórico de abuso de álcool e drogas, misturado ao drama de seu relacionamento com o também britânico Blake Fielder-Civil, imerso em histórias de violência doméstica mútua e interdependência afetiva tóxica, já eram fatos conhecidos por todos, fossem fãs devotos ou leitores ávidos de tablóides e polêmicas. Olhando em retrospecto, a trajetória de Amy parece, mais de dez anos após seu precoce falecimento, algo quase premeditado: é como se fosse óbvio que uma voz como a dela, de tamanha sutileza e beleza ímpares, fosse destinada a queimar ao invés de definhar, como diria Neil Young. Sua entrada no mítico “Clube dos 27” (referente à idade da cantora e intérprete, curiosamente a mesma de outros ícones, como Jimi Hendrix, Janis Joplin, Kurt Cobain e Jim Morrison) é quase onipresente em um legado que rendeu dois belos discos – “Frank” (2003) e “Back to Black” (2007).
É infeliz, assim, constatar que “Back To Black” (2024), nova cinebiografia dirigida por Sam Taylor-Johnson (que já teve uma experiência prévia com a dramatização de grandes ícones da música em seu “Nowhere Boy”, de 2009, no qual retratava os anos formativos de John Lennon) passa muito, muito longe de fazer jus a uma das mais marcantes, ainda que breves, trajetórias da música popular recente. Sofrendo com um roteiro mal amarrado, de atuações que variam do medíocre ao pífio – especialmente em sua protagonista, vivida por Marisa Abela – o novo longa é notável em seu desserviço para com a extensa fanbase da artista, e se destaca por conter, em suas (bem longas) duas horas de duração todos os elementos que se fazem presentes nas piores cinebiografias lançadas em tempos recentes.
Isso fica claro principalmente graças à natureza da história abordada pelo roteiro: a vida de Winehouse, principalmente após sua morte, é de conhecimento público mesmo que não restrito exclusivamente aos ouvintes mais dedicados de seu trabalho. A jovem Amy, oriunda de uma família judia dos subúrbios de Londres e filha de um taxista (Eddie Marsan) sonha em se tornar uma cantora de jazz capaz de fazer frente às suas maiores heroínas. Não demora muito (no filme, são menos de 20 minutos) para que a novata acostumada a tocar acompanhando a si mesma na guitarra em pubs seja contactada pela agência do bem-sucedido produtor musical Simon Fuller, que faz uma proposta para gravar um disco apesar da reticência da mesma, que fala com desdém sobre como ela não é uma Spice Girl. A cena na qual Abela enumera suas maiores referências, de Sarah Vaughan a Lauryn Hill, é risível em sua artificialidade. Poucos instantes depois, ela é mostrada em Miami, durante as gravações de “Frank”.
Cabe aqui fazer referência a um dos mais latentes problemas no longa: não existe qualquer esforço em situar a jornada de Amy no tempo, de modo que o apressado ritmo com o qual os passos da artista são retratados são ainda mais desorientantes (ou seria desorientados?) e aparentemente desinteressados. É quase como se seu sucesso fosse uma obra do acaso, com trechos em que a compositora é mostrada escrevendo algumas de suas mais antológicas canções como se fossem transmissões telepáticas do além – algo no qual “Back To Black” lembra, e muito, o igualmente confuso e decepcionante “Bohemian Rhapsody” (2018).
Ao invés de mostrar o processo criativo de Winehouse, por vezes a produção prefere centrar foco na turbulenta relação com Fielder-Civil (vivido por um quase sempre caricato Jack O’ Connell). A presença de Blake, obviamente, seria inevitável tendo em vista a maneira com a qual seu romance é referenciado nas canções de Amy, principalmente a partir de “Back to Black”, o álbum. Os problemas entre os dois, tanto em relação a infidelidade (no caso dele) quanto no que tange a instabilidade emocional (principalmente no caso dela) são intoxicantes na maneira como tomam tanto do tempo do filme; imagine “500 Dias com Ela” (de Mark Webb, 2009) filtrado através de “Réquiem Para um Sonho” (de Darren Aronofsky, de 2000) para que se entenda o tipo de narrativa adotada aqui.
O roteiro também deixa pouco espaço para que o elenco possa ser bem trabalhado: tirando o bom potencial dramático de Leslie Manville, no papel da avó de Amy, Cynthia, pouco se salva em relação aos coadjuvantes. Eddie Marsan é intrusivo em suas aparições como o pai da cantora, conforme passa a dar cada vez mais palpites no que diz respeito à maneira como a filha conduz a própria vida (compreensível) e também a carreira (de forma bastante forçada). Para além da já citada atuação estereotipada, ainda que carismática, de O’Connell como Blake, é óbvio que todas as atenções são centradas no desempenho de Abela como a protagonista desta trágica história. E sua performance fica, na maioria das vezes, aquém do que se esperaria, ou do que sua personagem demandaria: os trejeitos imitados de Winehouse se mostram quase sempre repletos de maneirismos quase robóticos, resultando em uma impressão mal-feita muito mais do que uma real incorporação da cantora, dentro ou fora dos palcos. A cena que mostra sua antológica, ainda que um pouco caótica aparição no (não nomeado, como costumaz neste longa) Festival de Glastonbury de 2008 é o perfeito exemplo disto, junto com a icônica apresentação remota feita durante a noite do Grammy do mesmo ano. Nesta última, aliás, todas as atenções são arrebatadas pelos intérpretes dos integrantes dos Dap Kings, a afiada banda que acompanhou Amy em seus momentos mais emblemáticos e que não chega a sequer ser referenciada pelo nome aqui.
Muitas palavras poderiam ser utilizadas para definirem, em suma, as ambições e o retumbante fracasso de “Back To Black”: ingênuo, preguiçoso, mal-conduzido, insosso e vazio são apenas algumas delas. O filme, por fim, carrega consigo todos os piores elementos que vêm assolando o gênero das cinebiografias dos últimos tempos – a tendência em enfileirar momentos importantes numerosos demais para serem desenvolvidos com o cuidado apropriado; a caracterização constrangedora de sua figura principal, que denota até certo desrespeito com sua memória e obra; e um ritmo vertiginoso (no pior sentido), que mostra a pretensão de quem almeja alcançar o mesmo nível do “The Doors” de Oliver Stone (de 1991) e acerta mais perto do ridículo “Stardust” (2020) e de sua patética representação não autorizada de David Bowie. Ninguém deveria se sentir culpado por considerar “Back To Black” esquecível e descartável – uma pena, considerando-se o peso do legado que se propõe a retratar, e o descaso ao transpor para a tela grande uma história de tanta dor, tragédia, luta, e boa música, não necessariamente nesta ordem.
– Davi Caro é professor, tradutor, músico, escritor e estudante de Jornalismo. Leia outros textos de Davi aqui.