entrevista de João Paulo Barreto
O nome de Halder Gomes está comumente associado a comédias em homenagem à sétima arte, como “Cine Holliudy” (2012), bem como sua continuação de 2018, além do emblemático “O Shaolin do Sertão” (2016), filme que paga um tributo hilário às películas orientais de artes marciais. Por isso, para o espectador que vai assistir a “Vermelho Monet” (2024), seu mais novo longa, é com surpresa que vemos o diretor percorrer uma trilha tão diversa em tons de estilo. E seu êxito na construção de uma trama de mistério que aborda o mundo das artes em uma moderna Lisboa do século XXI, com diversas nuances de drama e vingança, se torna evidente ao subir dos créditos finais. Trazendo uma análise aprofundada deste universo sob um viés crítico da frivolidade de um mundo frágil de aparências e que é movido por dinheiro e egos, “Vermelho Monet” acaba por discutir a arte em vários de seus aspectos, chegando a uma questão cerne que permeia sua metragem: o que é originalidade e cópia nas artes plásticas?
Em entrevista ao Scream & Yell, o diretor comentou um pouco sobre esse processo de migração entre comédia e drama, e falou sobre a dificuldade maior na escrita, do que na execução do roteiro em imagens. “É um roteiro no qual, qualquer coisa escrita nele, no meu pensamento vinha algo muito complexo de executar. E em camadas muito profundas desses personagens. Então, por muito tempo, esses personagens ficaram ali. Eu tentava encontrar um equilíbrio de cada um deles para achar esse tom que eu queria apresentar para o filme”, explica o diretor. Tendo Chico Diaz como um desses personagens, no caso, um atormentado pintor que segue sua vida em um estado progressivo de cegueira, o roteiro de Halder desenha uma rivalidade entre ele e uma marchand das artes vivida por Maria Fernanda Cândido. Ambos, porém, guardam um segredo comum relacionado à falsificação de obras de arte com o intuito de enganar ricos colecionadores.
Na construção do seu texto e na junção entre as imagens no papel e as que vemos na tela, Halder Gomes afirma ter buscado um equilíbrio entre o expressionismo e o barroco. “Tinham momentos em que eu levava o Johannes (Chico Diaz) para um lugar que eu acho que fui muito, e depois tinha que retornar. Então, achar a dose desse roteiro foi a parte mais complexa. E transpor pra dentro desse universo foi um outro grande desafio. Porque a execução dele como um pensamento de cinema parte de um quadro”, relembra Halder, aprofundando o processo de construção das imagens desde suas inspirações iniciais nas pesquisas.
“Quando visito museus, tenho o hábito de observar certas pinturas, de escolher algumas delas. Nessas pinturas, dou uma ação. E nessa ação, aqueles personagens ganham vida e conto a história que eu quiser a partir dali. Num primeiro momento, é a imagem que vai estar em primeiro plano. Depois é o universo dos personagens”, pontua Gomes. “A intenção era construir um universo onde eu quero apresentar uma pintura barroca. Mas na hora em que eu disser ação, vou a fundo no existencialismo desses personagens que são expostos ao público em um tom expressionista. Esse é o desafio do filme: unir a estética barroca ao expressionismo deles”, garante o diretor.
Chico Diaz, interpretando o pintor Johannes Van Almeida, consegue trazer todo o tormento de sua figura trágica à tona de modo a tornar aquela condição física de desconforto diante da gradativa perda da visão algo que se reflete em sua presença de maneira dolorosa e orgânica ao espectador. Não é somente a capacidade de ver que ele está perdendo, mas sua possibilidade criar. Dentro daquele ambiente que, mesmo moderno, reflete uma atmosfera barroca, citada por Halder acima, o experiente ator encontrou o tom exato, mas, modesto, não abraça para si todo o crédito.
“Ultimamente, tenho pensado sobre a responsabilidade do intérprete. E não me sinto muito mais responsável por muita coisa não, a não ser a ideia de propor um grande vazio, onde as pessoas todas vêm. Pessoas como o roteirista, o diretor, o iluminador, o cenógrafo, e, também a locação. E tudo isso vai preenchendo esse meu cântaro esvaziado para ser preenchido pelos colegas, pela situação, pelo contexto de filmagem. Ou seja, nunca está pronto. Vai estar pronto a partir do momento que ele falar: ‘Ação!'”, frisa o ator, e prossegue: “A responsabilidade de um preparo racional… (pausa) Claro que a gente leu tudo! Claro que a gente contextualizou, mas acho que tem um abandono necessário para que se torne orgânico, para me adequar a tudo o que está sendo usado para construir a história. Não posso dizer que a responsabilidade seja minha, mesmo. É tudo mais uma consequência do que uma causa de qualquer resultado artístico”, exprime Diaz.
Na pele da vaidosa merchand Antoinette, que se vê encurralada pela sua própria ganância, Maria Fernanda Cândido aborda essa ideia de um mundo de aparências frágeis, além do conceito de arte que “Vermelho Monet” traz em sua discussão: “Esse é um ponto nevrálgico: essa fricção entre a essência e a aparência é discutida o tempo todo no filme. Inclusive porque as obras são falsas. Mas o que é uma falsificação? Você vai passando por essa questão o tempo inteiro. São as obras. É a própria personagem. Uma personagem contraditória porque ela tem uma grande paixão pelas artes, pelo mundo da pintura. Ela tem uma vida, uma experiência pregressa em relação a isso”, descreve Fernanda. “Mas é uma personagem que, no ponto em que o filme está acontecendo, que a história está acontecendo, ela está absolutamente seduzida pelas frivolidades do mundo. Pelo dinheiro, pelo poder. A vida dela virou um grande tabuleiro de xadrez, com jogos de manipulação, jogos de poder. Ela é essa pessoa que se distanciou dessa paixão inicial, dessa essência, para caminhar para esse mundo das aparências. Da aparência pura, vamos dizer assim. Foi esse desafio que esse roteiro me deu, que Halder me deu a oportunidade de encarar”, comemora a atriz.
No papo abaixo, os três aprofundam esse processo de criação. Confira!
Halder, uma das principais surpresas para mim, conhecendo sua carreira como diretor de filmes tão marcantes na comédia, foi vê-lo adentrar tão bem nesse estilo do drama abordando o universo das artes plásticas. Foi difícil para você essa migração na escrita do roteiro e na direção do filme como um todo?
Halder Gomes – Talvez mais na construção do roteiro ao longo dos anos do que na execução. Porque é um roteiro no qual, qualquer coisa escrita nele, no meu pensamento vinha algo muito complexo de executar. E em camadas muito profundas desses personagens. Então, por muito tempo, esses personagens ficaram ali. Eu tentava encontrar um equilíbrio de cada um deles para achar esse tom que eu queria apresentar para o filme. Porque tinham momentos em que eu levava o Johannes para um lugar que eu acho que fui muito, e depois tinha que retornar. Então, achar a dose (certa) desse roteiro foi a parte mais complexa. Transpor pra dentro desse universo foi um outro grande desafio. Porque a execução dele como um pensamento de cinema parte de um quadro. Quando visito museus, tenho o hábito de observar certas pinturas, de escolher algumas. Nessas pinturas, dou uma ação. E nessa ação, aqueles personagens ganham vida e conto a história que eu quiser a partir dali. Mas em um primeiro momento, é a imagem que vai estar em primeiro plano. Depois é o universo dos personagens. Então, a intenção era construir um universo onde eu quero apresentar uma pintura barroca. Mas quando eu disser ação, vou a fundo no existencialismo desses personagens que são expostos ao público em um tom expressionista. Esse é o desafio do filme: unir a estética barroca ao expressionismo desses personagens. E, obviamente, isso levou um período muito longo de estudo, de definição, de que estética eu vou apresentar. Tem momentos em que você está ali no onírico, com fragmento de lembranças de Adele, onde tem uma estética às vezes impressionista, às vezes surrealista, às vezes pré-Rafaelita. E no mundo de Johannes, tem aquele barroco denso, contrastado, aquela luz de Caravaggio, luz de Vermeer e de Rembrandt que corta o ambiente. Então, são muitas informações que estão ali dentro dessa estética e aliada, também, a toda a parte metafórica em relação às cores como uma metáfora da vida. A relação do vermelho e do azul, essas cores que são complementares, mas, ao mesmo tempo, autodestrutivas. Isso como uma metáfora da vida desses personagens. No mundo vermelho que Johannes enxerga, ele é frágil diante do azul da roupa que Johannes traz. Mas, no fragmento das memórias de Adele, o vermelho e o azul trazem a felicidade, porque eles estão complementares, e não sobrepostos. Tem toda uma simbologia que o filme conduz nessa camada mais profunda que conta a história da arte através do que está exposto lá em vários momentos.
Maria Fernanda, sua personagem, a Antoinette, para mim, reflete muito da frivolidade, da artificialidade do mundo moderno, do mundo de aparências das redes sociais, em um glamour que é belo, mas que esconde algo de podre e falso. Ao assistir ao filme, fiquei refletindo sobre esse contraste da pureza da arte que Johannes produz. Mesmo sendo uma arte clonada, uma arte que é um plágio, ainda há uma pureza naquilo que ele faz. E Antoinette representa a perda dessa última fagulha de pureza que aquela criação possui. Ao ler o roteiro, essa percepção de plasticidade falsa vs. pureza chegou a você, também?
Maria Fernanda Cândido – Sim, absolutamente. Acho que esse é o ponto central do filme. Você tocou no ponto nevrálgico: essa fricção entre a essência e a aparência é discutida o tempo todo. Inclusive porque as obras são falsas. Mas o que é uma falsificação? Então, assim, você vai passando por essa questão o tempo inteiro. São as obras. É a própria personagem. Uma personagem contraditória porque ela tem uma grande paixão pelas artes, pelo mundo da pintura. Ela tem uma vida, uma experiência pregressa em relação a isso. Mas é uma personagem que, nesse ponto, no ponto em que o filme está acontecendo, que a história está acontecendo, ela está absolutamente seduzida pelas frivolidades do mundo. Pelo dinheiro, pelo poder. A vida dela virou um grande tabuleiro de xadrez, com jogos de manipulação, jogos de poder. Ela é essa pessoa que se distanciou dessa paixão inicial, dessa essência, para caminhar para esse mundo das aparências. Da aparência pura, vamos dizer assim. Foi esse desafio que esse roteiro me deu, que Halder me deu a oportunidade de encarar.
Chico, seu personagem, o Johannes, ainda possui uma pureza. Ele possui um trauma, uma frustração pela sua carreira como artista. E junto a isso a cegueira gradativa e precoce que vem colocando-o nessa berlinda. E ele se percebe se como um cara que não tem mais nada a perder em relação a isso. Quando você compôs a sua atuação para essa figura trágica, como foi essa busca por uma presença orgânica de se inserir em um mundo moderno, mas sendo um personagem tão calcado na ideia do clássico na arte, algo que é corroborado pelo cenário que Halder criou para ele?
Chico Diaz – É uma bela questão. Agradeço a pergunta, mas eu, ultimamente, tenho pensado sobre a responsabilidade do intérprete. E não me sinto muito mais responsável por muita coisa não, a não ser a ideia de propor um grande vazio, onde as pessoas todas vêm. Pessoas como o roteirista, o diretor, o iluminador, o cenógrafo, e, também a locação. E tudo isso vai preenchendo esse meu cântaro esvaziado para ser preenchido pelos colegas, pela situação, pelo contexto de filmagem. Ou seja, nunca está pronto. Vai estar pronto a partir do momento que ele falar: “Ação!” Então, a responsabilidade de um preparo racional… (pausa) Claro que a gente leu tudo! Claro que a gente contextualizou, mas acho que tem um abandono necessário para que se torne orgânico, para usar uma palavra que você usou, para me adequar a tudo o que está sendo usado para construir a história. Então, a responsabilidade eu não posso dizer que seja minha, mesmo. É tudo mais uma consequência do que uma causa de qualquer resultado artístico ali. Agora, é um personagem fascinante. Há um abismo humano muito interessante. Porque não é só o humano da pessoa Johannes, mas, também, da questão artística que ele leva e gera uma curva de arrefecimento, uma curva de declínio. Gosto muito desses personagens que estão no embate de tentar entender o significado da existência naquele instante. Acho que isso os humaniza. Muito mais do que estar na glória, do que estar na vitória, do que estar na luz, se debater entre as sombras de uma procura de significado me parece ter resultados mais potentes. É uma leitura mais potente. Mas o Johannes, sim, é um presente para o intérprete poder entrar nesse ringue aí que o Halder propôs para ele. Fora a literatura exigida, toda a contextualização racional. Assim, as conversas com Halder forma muito saudáveis.
Maria Fernanda Cândido – Um complemento. Você usou uma palavra que eu acho que é muito importante dentro de um trabalho como esse, que traz uma estética expressionista. Halder também falou disso já em outros momentos. Então, assim também para a gente tem como nos responsabilizarmos absolutamente. Porque estamos mergulhando em um universo expressionista naquelas cenas. Atribuo muito tudo isso ao Halder, à assinatura dele, ao que ele escolheu construir e levar para o público. Porque a gente tem isso. A gente tem uma cena que eu tenho esse lenço preto, dentro de uma luz escura representando a morte, quase fazendo ali uma referência a “O Sétimo Selo”. São vários momentos. Tem aquele em que entro naquela festa que tem o tango. Tem o fado acontecendo ali, sendo cantado pela portuguesa. E uso aquele colar que é uma serpente. São elementos absolutamente expressivos. Isso, para o ator, é um grande presente. Não temos um filme assim para fazer a todo momento. É raro. E ainda complementando também a questão dessa personagem, desse mundo de frivolidades e tal, acho que o filme traz uma discussão muito importante sobre a mercantilização da arte. Nós estamos tratando desse assunto. Isso é o filme. E a minha personagem é essa mulher que faz o comércio da arte. Ela é a marchand. Ela é essa figura dentro do filme. Porém, nós podemos pensar na vida como um todo. Porque, hoje, o que a gente vive com esse momento do hiper capitalismo, que é o nosso mundo contemporâneo, é o que nós todos vivemos, nós temos essa mercantilização de praticamente todas as instâncias da vida humana. Então, essa discussão que o filme traz, que é relacionada às artes plásticas, à pintura, ela pode ser estendida para praticamente todas as áreas da vida, hoje.
Halder queria lhe perguntar sobre essa de mergulho em um mundo onírico que o cenário traz. Como foi a experiência para encontrar esse equilíbrio entre Direção de Arte (trabalho da Juliana Ribeiro), Direção de Fotografia (trabalho da Carina Sanginitto) e sua presença como diretor e idealizador? Nesse processo, me chamou muito a atenção aquele choque entre a frieza hermética do cenário por onde caminha a Antoinette e o natural do cenário onde o Johannes vive. Além disso, “Vermelho Monet” brinca com a ideia pop das artes plásticas, como naquela cena em que há aquela festa com cosplays de artistas e suas obras. Como foi o processo dessa criação?
Halder Gomes – Juliana e Carina são parceiras de praticamente todos os meus trabalhos. E como esse filme andou correndo em paralelo às comédias, ele sempre foi pauta em tudo que a gente estava filmando. Era assunto nas horas vagas. E nessas horas vagas, muitas vezes fomos para muitos museus discutir obras, observar referências, estudar para poder ir construindo ao longo do tempo essa percepção do que seria o look desse filme. Em relação à Direção de Arte, por exemplo, nós fizemos um recorte de duas Lisboa. Nós temos a Lisboa histórica, onde se insere o mundo ali de Johannes. E a Lisboa contemporânea que está ali, onde foi feita aquela exposição universal no ano 2000, é onde está o universo de Antoinette. Esses mundos se encontram nesse lugar. Então, isso era o recorte geográfico da cidade. E, por exemplo, existe uma ligação muito forte no filme em camadas que estão ali atreladas à história e de uma forma, eu diria, subliminar. Quando você se refere àquela cena daquela explosão de cores com aqueles cosplays de artistas, por exemplo, ali é o momento de um arco na virada onde Florence, usando o laboratório da relação com Antoinette, ganha confiança no texto que ela não conseguia alcançar de Florbela. Ela veste a fantasia de Florbela e vai para aquele mundo. E a música que está tocando lá é “Hot Stuff”, de Donna Summer. Não à toa. Porque Dona Summer foi uma pintora fabulosa. A obra dela é uma coisa espetacular. E ali era o mundo onde ela se encontrava como artista na paz, e não na pressão que o mercado colocava. A paleta daquela cena específica dialoga um pouco com a paleta do que são os quadros da Donna Summer. Então, além da construção estética, tem também toda uma construção musical. Essa construção está no filme como movimentos de um concerto musical, onde a trilha também se relaciona em outras camadas com o que está posto em cena. A obra de Erik Satie, por exemplo, adaptada às cordas portuguesas, à guitarra portuguesa, não é algo à toa. Erik Satie é um compositor francês que, em seu momento mais lindo de composições, quando foi perdidamente apaixonado por Suzanne Valladon, que foi a musa de Edgar Degas, de Monet, de Renoir. E ela se tornou uma grande pintora, inclusive, mãe de Maurice Utrillo, outro grande pintor. São artes se encontrando e gerando novas cores. O encontro de Suzanne Valladon com Erik Satie gerou outras cores. Então, tudo o que está no filme está posto, entrelaçado. A literatura está ligada com a música que está ligada com a pintura que está ligado com o cinema que está ligado com o teatro. Tudo se retroalimenta. Então, tinha uma questão de como colocar isso tudo em forma de cinematografia e de arte, também. E nessa camada musical.
– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde, de Salvador.