Faixa a faixa: Conheça em detalhes o debute da banda gaúcha Graxelos

introdução de Homero Pivotto Jr.
faixa a faixa por Márcio Grings

A banda gaúcha Graxelos encontrou o próprio caminho na encruzilhada entre vários gêneros: trata-se de um trabalho autoral que tem o rock como norte, mas que passeia pelo rock, folk, country, gospel, soul e até MPB. Idealizado por Gustavo Telles (ex-baterista da Pata de Elefante) e Márcio Grings (escritor e jornalista musical, cuja história contamos aqui no Scream & Yell), o projeto reúne ainda Marcio Petracco (TNT, Cowboys Espirituais), Murilo Moura (Alemão Ronaldo, Gustavo Telles & Os Escolhidos), Vini Brum (Rinoceronte, Quarto Ácido) e Vitor Cesar (Kingsize).

Nesta nova agremiação musical, Telles segue tocando o kit percussivo, mas, assim como em seus trabalhos solo, empresta também a voz para as faixas. Já Grings é o responsável pela harmônica e coescreveu com Telles todas as músicas. Petracco desdobra-se em pedal steel, violão Weissenborn, guitarra slide, bandolim e voz de apoio; Murilo Moura assume piano, teclados e vozes de apoio; Vini Brum contribui com voz, baixo, violão e voz de apoio e, Vitor César, segura voz, guitarra, violão e voz de apoio.

Reunir um time de qualidade e eclético não é tarefa simples. Ainda mais quando há barreiras geográficas (os integrantes residam em cidades separadas: Vacaria, Santa Maria e Porto Alegre). Contudo, os Graxelos criaram uma ponte capaz de ligar os músicos para tocar a adiante a iniciativa, bem como agregar referências individuais dos envolvidos. Esse elo tem como ingredientes a paixão por compor e estar em movimento (seja o da criação ou da estrada). “Shangri-lá”, álbum de estreia lançado em março deste ano, é a prova da química entre a banda. Em seus 10 temas, o registro demonstra que há entrosamento e revela-se uma obra promissora.

A inspiração para o debut vem do livro “Horizonte Perdido” (1933), romance escrito pelo escritor britânico James Hilton em que o autor menciona uma cidade perdida nos Himalaias chamada Shangri-la — um lugar paradisíaco onde reina a paz e a harmonia. Já a alcunha do grupo é uma brincadeira com o graxaim, animal semelhante à raposa comum no sul do Brasil e que tem hábitos crepusculares e noturnos.

Para compreender a viagem na qual podemos embarcar com os Graxelos, fizemos um faixa a faixa com Grings contando sobre referências musicais, temática das letras e os personagens que construíram “Shangri-lá”. O disco está disponível via streaming e deve ganhar formatos físicos em breve (CD em julho e, vinil, até o final de 2024). Além disso, há shows marcados para a primeira semana de julho, com destaque para a apresentação no Bar do Alexandre (5/7), na capital gaúcha.

https://www.youtube.com/watch?v=j1neP7u64yU&list=PLxAB_uhp-gKPyndrbWmG0l0vFVBAjawlK


01) Tropica, Mas Não Cai – O álbum começa com o rock enfiando o pé na porta. A temática aqui é a superação após o fracasso, o recomeço, a necessidade de seguir em frente mesmo quando o mundo desaba sobre nós: “Nunca esteve em questão a ideia de desistir”. A guitarra de Vitor César (coautor da composição) é o motor de propulsão que impulsiona a linha de frente, lembrando os maneirismos de Eric Clapton na virada dos anos 1960/70. O jogo de vozes é outra sacada que dá o tom de como as coisas se dão nos Graxelos: Telles na linha de frente, Murilo fazendo uma voz de apoio em apenas um dos versos e Vini, dando apoio no refrão. Ou seja: somando ainda Vitor e Petracco, são cinco vozes produzindo camadas e se intercalando nas interações. O fadeout que fecha as cortinas no início do segundo solo funciona como um preâmbulo, um anúncio de que alguém precisou fazer a mala às pressas porque há necessidade de partir imediatamente para outro lugar.


02) O Viajante – Foi nosso primeiro single, lançado em janeiro. Sempre me liguei em músicas que citam cidades. “Truckin’” (Grateful Dead), “Route 66” (Bobby Troup) são bons exemplos disso. Só que lugares como Chicago, Gallup, Flagstaff, New York, Detroit etc., são urbes distantes da realidade de muitos de nós. Pensando em referências próximas, “Pampa na Garupa”, do grupo regionalista Os Farrapos, promoveu essa experiência em terras gaúchas. Por isso o viajante graxelo que fala um português sul-brasileiro percorre cidades como Santa Maria, Vacaria, Uruguaiana, Porto Alegre, Bagé, Passo Fundo (todas no Rio Grande do Sul) e Buenos Aires, na Argentina, revelando as visões e epifanias vividas nessa jornada. O riff de Vitor César é o instantâneo Crazy Horse do álbum, assim como o giro das vozes de Telles, Vini e Vitor intercala o protagonismo à maneira de “The Weight” (The Band), com ambas as canções trazendo a estrada e o seu misticismo como Pedra de Roseta dos viajantes, lembrando que, às vezes, o percurso é tão importante quanto o destino.


03) Naipe de Metais – Um casal que apenas na cama encontra a consagração do romance. “Pare, pense e entenda — que — somos diferentes/ Há algo além/ Na cama somos um/ Almas desiguais/ Eu sei, você não entende”. Mesmo fadado ao fracasso, as lembranças não se apagam quando a cama é arrumada: “Acabou/ Mas a música não parou”. O pedal steel de Marcio Petracco e o piano de Murilo Moura nos jogam na música country, para ao final, o trompete de Eliézer Moreira reavivar o kerb dos imigrantes alemães. Essa mescla de elementos abandona a ideia de unidade, pureza e homogeneidade cultural, refletindo diversidade, pessoas e expressões que estão nesses entre-lugares (com hífen mesmo). “Os Graxelos são o hífen desse conceito”, escreveu o jornalista Romero Carvalho, resgatando uma definição criada pelo sociólogo Silviano Santiago.


04) Nos Olhos de Quem Vê – Em matéria no Whiplash, Gustavo Maiato definiu o grupo como “uma espécie de Clube da Esquina gaúcho”, o que, particularmente, acho um exagero. De todo modo, é uma conexão curiosa, e que talvez faça sentido justamente nessa música. Por outro lado, o pedal steel de Petracco e a harmônica trazem ambiências do country rock norte-americano. A guitarra de Vitor César oferece um pouco de blues e, Luciano Albo, toca o baixo. A letra revela o contraste na contemplação campestre frente a confusão do trânsito e das cidades. Essa é uma das temáticas centrais dessa estreia dos Graxelos — o vislumbre da natureza como um refúgio — e a necessidade de movimentação pelos centros urbanos, sempre deixando claro ao ouvinte que é nesse asilo voluntário — no fundo da grota — onde a reside verdadeira felicidade.


05) Água Límpida – Se em “Nos Olhos de Quem Vê” há um flerte com os refúgios naturais, em “Água Límpida” vemos o horizonte e o céu azul encontrando as montanhas como um retiro espiritual. Aqui vejo muito a influência das minhas leituras nos livros de Henry David Thoreau e Robert Louis Stevenson, escritores que preconizam o ambientalismo em pleno século 19. “Vejo a luz do sol — as nuvens — A frágil dança das flores/ A brisa leve vai me reparar/ Lavar as mãos no ermo riacho/ E cantar sozinho longe dos currais/ As curvas são longas/ Até Shangri-lá leva um tempo/ Mas eu vou chegar”. Telles, Murilo e Vini cantam juntos o tempo todo (exceto no refrão), com violões, bandolim, harmônica, pedal steel e um piano honky-tonk emprestando a moldura bucólica que a letra sugere. Pensamos no álbum como vinil (que deve ser lançado no final do ano), aqui fechamos o Lado A.


06) Shangri-Lá – Ao início do Lado B, da mesma forma que na face anterior, é o rock que inaugura as ações. O “Shangri-lá” buscado pelos Graxelos fixa sua âncora justamente na faixa que batiza o álbum. “A lua cheia alumia/ E os grilos a cricrilar/ Uma só sombra chinesa/ Na cabana — nosso Shangri-lá”. A guitarra de Vitor César é keithrichardniana, com destaque para os solos de slide de Petracco, e um piano categórico de Murilo Moura, todos ajustados à climática da música. Nos primeiros ensaios, surgiram versões de até 15 minutos de “Shangri-lá”, um dos temas que usamos para ajustar os motores no início de tudo. Eu e Telles compomos essa em menos de 1h, em Vacaria, onde outras sete composições surgiram em apenas cinco dias. Não à toa é uma das nossas músicas mais lembradas e ouvidas, sendo facilmente escolhida pelo grupo como segundo single do álbum.


07) Copos de Plástico – Tem uma banda surgida aqui em Santa Maria, na verdade um duo, Quintal de Clorofila, formado pelos irmãos Arbo, Negrende e Dimitri, e que lançou só um LP, “Mistério dos Quintais” (1983). Pelo menos pra mim, “Copos de Plástico”, desde quando ela nasceu como música, lembrou-me de cara a profundidade acústica e a mitologia das letras do Quintal. É a canção mais folk do álbum, com três espaços para solos — todos de Marcio Petracco (bandolim e violão Weinssenborn). Os vocais combinados de Telles, Vini e Vítor emprestam um colorido muito bonito à música, melancólico eu diria, numa letra que nos lembra o quanto, apesar das agruras da existência — “viver é bem mais que sofrer” —, e que precisamos celebrar nossas conquistas, independente do copo em que esse brinde seja feito.”


08) Força Superior – A inspiração é o gospel norte-americano, o soul e toda a mítica evocada por esse capitólio musical. Só que em “Força Superior”, tratando-se da busca idílica dos Graxelos, é a natureza que triunfa frente à humanidade: “Lá do céu/ Uma força superior/ Joga estrelas nos homens/ E as benção numa flor”. Por outro lado, há também uma espiritualidade dita num viés vernacular: “Nessa mesa não nos falta vinho ou pão/ E que a vaidade não ofusque a gratidão”. Aqui está uma cápsula do tempo em que a voz e o talento de Gustavo Telles brilham. Quem ainda não conhece seu trabalho solo (são quatro álbuns de estúdio e um ao vivo) faça isso o mais breve possível. Melodista nato, quando ouvimos suas composições muitas vezes temos a impressão de que se trata de algo conhecido (e não é), o que nos aproxima rapidamente de canções como “Força Superior”.


09) Jornais e Açúcar – Foi a primeira música que escrevemos juntos, à distância, trocando mensagens e áudios pelo WhatsApp. A melodia é intrincada e cheia de curvas, o que me causou dificuldades para criar uma estória à altura. A letra traz influência da pandemia e do isolamento — foi única criação nesse período — falando justamente sobre as pendengas de estar só: “Tomando um vinho por aqui — eu e eu —/ Sem manchas, nem batom/ Sem perfume ou sinais/ Nenhuma voz, nenhum som/ Oh, solidão! o que está por vir?”. Daniel Mossmann, guitarrista da Pata de Elefante, faz sua primeira participação, e produz uma incrível camada de guitarras na parte final de “Jornais e Açúcar”. Ah, falo de “açúcar jogado no chão”, essa imagem veio de “Sugar on the Floor”, uma das minhas canções favoritas na voz de Etta James.


10) Desde Que Perdi a Minha Fé – Roubando uma expressão do meu amigo Romero Carvalho, jornalista em BH, em “Desde Que Perdi a Minha Fé” temos os Graxelos ‘’zipados’. Folk, country, blues, rock, pop, uma suíte em quatro atos, que reuniu o maior número de músicos em uma faixa (8): todo o grupo + Daniel Mossmann (guitarra) e Luciano Albo (violão de 6 e 12 cordas + percussão). Aqui, o personagem percebe que o tão almejado Shangri-lá na verdade não está num refúgio, mas sim no próprio movimento de ir e vir, e, que ao final da jornada, seja homem ou bicho, ou cada um de nós, apenas está à procura de um lugar confortável nesse mundo cruel: “Um graxelo se esconde atrás de um espinilho/ No retrato daquele bicho, a diferença se perfaz/ Mas finjo que não o vi, apenas finjo que não o vi/ No disfarce daquele bicho, a descrença se desfaz”. Se eu fosse escolher uma música apenas, “Desde Que Perdi a Minha Fé” estaria no alto do pódio.

– Homero Pivotto Jr. é jornalista, vocalista da Diokane e responsável pelo videocast O Ben Para Todo Mal

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.