texto de Renan Guerra
Torquato Neto é um nome fundamental quando se fala em Tropicália e em todas as movimentações artísticas brasileiras dos anos 1960. Nascido em Teresina, foi após sua mudança para Salvador que ele começou a atuar ao lado de artistas baianos de diferentes frentes, indo do cineasta Glauber Rocha aos músicos Caetano Veloso e Gilberto Gil.
Colunista e agitador cultural, Torquato criou e produziu ao lado de nomes como Décio Pignatari, Waly Salomão, os irmãos Augusto e Haroldo de Campos, Hélio Oiticica e o cineasta Ivan Cardoso – aliás, as imagens mais icônicas de Torquato vêm do filme “Nosferatu no Brasil”, de 1970. Enfrentando problemas como depressão e alcoolismo, Torquato se suicidaria em 1972, aos 28 anos, sem nunca ter oficialmente publicado um livro, mas com uma série de canções e escritos que foram posteriormente compilados em coletâneas e compilações.
Uma dessas publicações é “Torquatália” (2004), com organização de Paulo Roberto Pires, que traz dois volumes com a obra de prosa e poesia de Torquato, reunindo a íntegra de sua coluna no jornal Última Hora e uma série de correspondências e textos inéditos. Editada pela Rocco, hoje em dia essa edição está esgotada e se tornou item raro, vendido a preços altos – cada volume custa mais de 300 reais em sebos virtuais. Porém foi num desses sebos entulhados de livros que o ator Tuca Andrada se deparou com “Torquatália” e, de seu mergulho nessa obra, nasceu o espetáculo “Let’s Play That ou Vamos Brincar Daquilo”, em cartaz em São Paulo no Sesc Pompeia até o dia 10 de maio e já com ingressos esgotados. Criado por Tuca, o espetáculo tem direção do ator ao lado de Maria Paula Costa Rêgo, que também assina a direção de movimento do espetáculo.
Apresentado no Espaço Cênico, uma sala menor do Sesc Pompeia, o público já entra na sala com os artistas no palco: Tuca Andrada, no centro, e Caio Cezar Sintonio e Pierre Leite, os dois músicos que o acompanham, nas laterais. Tuca recebe o público como se fosse um papo e quando vemos já estamos mergulhados no texto do espetáculo, como que de uma conversa íntima em que Tuca fala sobre sua perspectiva pessoal, em primeira pessoa, mudamos logo para os textos de Torquato Neto. E é nesse fluxo que o espetáculo segue, em uma costura muito bem estabelecida entre as intervenções pessoais de Tuca e as falas e poesias de Torquato. Como perspectiva inicial, é interessante observar como a figura política inflamada de Tuca nas redes sociais dialoga de forma direta com os discursos incisivos e os pensamentos irrevogáveis de Torquato, o que cria uma primeira importância dessa montagem: criar diálogos e fissuras entre o nosso tempo e os anos iniciais da ditadura militar segue sendo atividade essencial para reacender discussões e não deixarmos que o passado seja apagado em meio aos diálogos apaziguadores.
Além disso, “Let’s Play That ou Vamos Brincar Daquilo” nos auxilia a olhar com outros olhos para a obra de Torquato Neto, fugindo da narrativa clássica que flerta com o mistério dessa figura “vampiresca”, da melancolia e da tristeza – inclusive, a forma com que o espetáculo narra e apresenta o suicídio do artista é algo bastante delicado e com o cuidado que o tema merece. Tuca Andrada consegue extrair nuances mais complexas de seu personagem, trazendo para o palco um Torquato apaixonado por arte, com um olhar curioso e incisivo sobre a cultura brasileira e com uma paixão avassaladora pelo mundo – algo que se contrapõe as dores causadas pelo seu alcoolismo e outras complexidades que o formavam. E tudo isso ganha corpo com um espetáculo veloz, em que Tuca canta, dança, se joga no palco, enquanto sua e navega pela visceralidade que as palavras podem carregar.
“Let’s Play That ou Vamos Brincar Daquilo” é um resultado muito rico da liberdade artística de Tuca, que se comprova como um artista múltiplo no palco e que consegue convidar o espectador para um mergulho intenso e veloz na obra de Torquato Neto. Que este espetáculo sirva para que outros – e novos – olhos se voltem para a obra de Torquato.
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava. As fotos são de Ashlley Melo / Divulgação