texto de Leandro Luz
“Aumenta que é Rock’n’Roll” (Tomás Portella, 2024) chega para somar no groove das cinebiografias musicais brasileiras. Seu diferencial, no entanto, é que não acompanhamos a trajetória de uma grande banda ou estrela, mas a de um comunicador ou, o que define ainda melhor o filme, a de uma emissora de rádio.
A “Maldita” é o apelido carinhoso da nova Rádio Fluminense, que começou a operar no dial FM, na 94.9 MHz, em março do badalado ano de 1982, exatamente no momento em que a música brasileira dava uma guinada em direção às guitarras – fossem elas mais soturnas, ácidas ou new wave. Luiz Antonio Mello (Johnny Massaro), jornalista convidado a assumir a direção da rádio ao lado do amigo Samuca (George Sauma), estava no olho desse furacão, e se juntou à uma penca de apaixonados por música para revolucionar a maneira como se ouvia rock no Brasil, gênero até então subaproveitado nas rádios de massa, que ora reverenciavam os clássicos da MPB, ora se limitavam aos chavões internacionais de sempre.
Com um repertório que começava em Who, Zeppelin, Clash, passava por Arrigo Barnabé e Egberto Gismonti, até culminar em Blitz, Legião Urbana e Plebe Rude, os programas idealizados por Luiz Antonio & Seus Blue Caps fizeram a cabeça da juventude de Niterói e de parte do Rio de Janeiro – ao menos daquela que conseguia sintonizar a frequência da rádio por culpa de sua precária, mas também coerente e sedutora (porque marginal) estrutura.
O filme de Tomás Portella, divertido, romântico e musicalmente inveterado – característica surpreendente, diga-se de passagem -, é baseado no livro “A Onda Maldita”, publicado por Luiz Antonio Mello em 1992, mesma publicação que serviu de inspiração para a realizadora Tetê Mattos dirigir um par de ótimos documentários a respeito da história da rádio, de seus fazedores e, parte fundamental da empreitada, de seus ouvintes (ambos intitulados “A Maldita”: o primeiro, um curta-metragem de 2007 que pode ser assistido aqui; o segundo, um longa lançado em 2019). Para quem já conhece a história, seja porque viveu o furdunço há época ou pela curiosidade de ler o livro ou de assistir aos documentários, “Aumenta que é Rock’n’Roll” pode funcionar como um retrato histórico romanceado, repleto de ternura e energia. Já para o restante do público, seja ele composto por pessoas que viveram os anos 1980 alheios às ondas da Maldita ou por uma geração que nem sequer conheceu o hábito de escutar música no rádio, o filme deve ser assimilado como uma comédia dramática das boas, capaz de (raríssimo caso brasileiro) retratar muito bem ícones e mitos da nossa cultura popular massiva ao mesmo tempo em que constrói uma estrutura dramática harmoniosa, com personagens fortes e que não apenas servem a uma suposta “função dramática”, ainda que todos estejam bem sintonizados com as emoções minuciosamente calculadas pelos seus realizadores.
Neste contexto, o destaque vai para o roteirista L.G. Bayão, que consegue costurar um bom número de informações e de personagens sem tornar a narrativa excessivamente dispersa, na mesma medida em que sustenta o drama nos elementos certos: a relação de amizade entre dois amigos, na parte introdutória da trama, e o romance intermitente vivido pelo protagonista, do meio para o final. Bayão é um operário da escrita (além de trabalhar para o cinema, também é escritor), sempre interessado em projetos de envergadura e com um olho atento para oportunidades que o coloquem em diálogo com o grande público. Dentre os mais de 20 longas-metragens em que assina como roteirista, são dele os roteiros da ótima trinca de comédia em parceria com Halder Gomes e Edmilson Filho, “O Shaolin do Sertão” (2016), “Cine Holliúdy 2: A Chibata Sideral” (2018) e “Bem-Vinda a Quixeramobim” (2022), e os dois primeiros filmes de uma das séries infantis mais bem sucedidas no país (“D.P.A. Detetives do Prédio Azul”). Além disso, colaborou com nomes interessantes como Jeferson De, Julia Rezende e Helvécio Ratton, e já havia se enveredado na escrita de cinebiografias, ajudando a construir as personas do famoso escritor associado ao espiritismo em “Kardec” (Wagner de Assis, 2019), e do gigante gentil Erasmo Carlos em “Minha Fama de Mau” (Lui Farias, 2019).
Entre acertos e erros na carreira, Bayão tem se mostrado um hábil artesão que, no projeto e com as parcerias certas, consegue fazer transparecer a sua destreza para contar histórias. Em “Aumenta que é Rock’n’Roll”, a saga para levantar e sustentar comercialmente um projeto utópico e marginal, empreendida pelo protagonista, é o sustentáculo da ficção, e apesar de alguns deslizes no que tange ao tempo narrativo – a trama se passa em um período de três anos, de 1982, estreia da Maldita, a 1985, ano da primeira edição do Rock in Rio – o filme consegue incorporar o espírito de uma época importante para a música e para a sociedade brasileiras e faz cada minuto de suas duas horas de duração soarem imprescindíveis, aspecto raro em projetos como esse.
Este é o segundo trabalho de Bayão com o diretor Tomás Portella (o outro se chama “4×100: Correndo por um Sonho”, de 2021), cuja carreira, por sua vez, nunca gozou de grandes êxitos por parte da crítica. Ainda assim, há um sopro de vida aqui que decorre não só da sintonia entre roteirista e diretor, como também do primoroso trabalho da equipe de direção de arte e figurino, que reconstrói os anos 1980 com vigor e confiança. É prazeroso assistir a uma boa encenação de shows da Legião Urbana e d’Os Paralamas do Sucesso, por exemplo, utilizando-se do Teatro Rival (bem marcado para quem conhece a vida cultural do Rio de Janeiro) como locação e de atores que sutilmente aproveitam-se de trejeitos marcantes de seus frontman para colocar o espectador no clima certo. Falando nisso, o elenco como um todo também se revela coeso e muito engajado em navegar pelos dramas apresentados, sejam eles reais ou fictícios, mais ou menos calcados nos eventos biográficos.
Johnny Massaro interpreta Luiz Antonio Mello com desenvoltura, caracterizando-o como um jovem “meio inconsequente, meio careta”, que está disposto a arriscar tudo pela música, mas sequer consegue frequentar os shows que a sua equipe organiza por conta de sua fobia de multidões. Quem o leva a confrontar os seus medos é a explosiva Alice, uma das locutoras da Maldita cuja insubordinação e rebeldia provocam – e encantam – Luiz Antonio, que logo se vê perdidamente apaixonado por ela. A personagem é vivida por Marina Provenzzano, que adota uma postura equilibrada entre o deslumbramento e a excitação de fazer parte de um projeto inovador e a lassidão de ter que administrar uma vida dupla, trama que se desenvolve mais adiante e que se torna um obstáculo para o casal. Aliás, um dos trunfos do filme é esse romance, construído de forma bastante tangível, bem temperado com sentimentos facilmente reconhecíveis para qualquer pessoa que já tenha se apaixonado na vida. É uma pena que, logo no finalzinho, em sua resolução, o roteirista prefira se auto sabotar e, ao invés de aproveitar uma conclusão coerente com as turbulências vividas pelos dois – melancólica, sim, mas verdadeira -, ceda lugar para uma catarse clichê. Escolha perdoável, mas indigesta.
E não são apenas os atores principais que se destacam. Caso nem sempre comum, praticamente todos os coadjuvantes fazem um ótimo trabalho, com menção especial ao grupo de mulheres locutoras (sim, na Maldita, a locução era majoritariamente feminina, contrariando todas as “regras” da comunicação vigente), que ganham uma penca de cenas divertidas e fundamentais para que o espírito daquele coletivo seja adequadamente transmitido ao espectador. Os momentos mais legais e que melhor ajudam a instaurar esse espírito são os que mostram as confusões durante a transmissão dos programas, desde uma promoção com camisetas da banda londrina Adam and the Ants que dá muito errado pelo envolvimento de formigas de verdade (em inglês, “ant” é o nome dado para o inseto), até uma conversa extremamente íntima entre duas locutoras que termina vazando pelo microfone, e consequentemente chegando aos ouvintes, por causa de um defeito no equipamento da transmissão. Esses episódios não servem simplesmente como alívio cômico, e sim estão muito conectados com a arte – um tanto esquecida – de se fazer rádio no Brasil. Outros atores fazem breves, contudo ótimas intervenções, como é o caso de Charles Fricks interpretando um Roberto Medina canastrão e alucinado, e de Orã Figueiredo dando vida ao superintendente responsável pela Fluminense FM. Só um adendo: vários atores de “Magnífica 70” (2015-2018), ótima série brasileira da HBO, participam do filme; além de Fricks, já citado acima, Adriano Garib, Hamilton Vaz Pereira, Bella Camero e Raoni Seixas compõem o elenco – isto se deve, possivelmente, à atuação deste último como diretor de elenco tanto na série quanto no longa.
“Vamos fazer tudo ao contrário, tocar a última faixa do lado B”. Frases marcantes como essa, declaradas pelas pessoas que fizeram história na nova forma de comunicação radiofônica implementada pela Maldita, dão conta do tipo de revolução que estava em curso. Pouco restou desse jeito de se comunicar com o público, e não tem como não citar o RoNca RoNca como uma das únicas peças de resistência que ainda habitam as frequências sonoras brasileiras. Mesmo que fora do dial, preservado pelas possibilidades da web, Maurício Valladares – fotógrafo, DJ e radialista incontornável na música brasileira – continua até hoje o legado dos programas colocados no ar pela Maldita no auge da emissora. É uma pena que ele apareça no filme apenas como o “primo de um amigo da galera” que está morando em Londres e manda notícias frescas da terra da rainha (por outro lado, alguém que conheça minimamente essa lenda da radiodifusão brasileira poderia imaginar algum ator interpretando o cabra? – melhor assim!). Na verdade, além de ter sido responsável por lançar bandas internacionais desconhecidas do público brasileiro até então, coisas do naipe de The Cure, New Order e U2, foi também das mãos de Maurício e de Liliane Yusim, no programa Rock Alive, que saíram as primeiras fitinhas K7 das bandas underground absolutamente desconhecidas de Renato Russo e Herbert Vianna, só para ficar nesses dois exemplos que pesam, em retrospecto, mais de uma tonelada!
Outro acerto dessa transposição dos fatos em prol de uma ficcionalização digna do bom cinema é a forma como o filme lida com a instituição “ouvintes da rádio”. Nota-se, a partir de inúmeras escolhas narrativas, a importância dos ouvintes para a concepção da programação da Maldita, tornando-se praticamente “coprodutores”, como afirma Luiz Antonio Mello em entrevistas, algo que se revela no interesse que ainda parece haver em torno do imaginário que circunda as histórias da rádio.
Depois de narrar uma longa jornada que carrega a Maldita do penúltimo lugar à terceira posição na audiência, “Aumenta que é Rock’n’Roll” culmina no quinto dia do Rock in Rio, no qual milhares de pessoas vibraram ao som de, entre outros hits brasileiros e gringos, “Pro Dia Nascer Feliz”, do Barão Vermelho, ao mesmo tempo em que comemoravam a escolha de Tancredo Neves como o primeiro presidente civil desde 1964. O diretor escolheu utilizar imagens de arquivo do evento, num movimento que imediatamente faz o coração do espectador bater mais forte, combinadas com filmagens (pelo que parece) feitas durante alguma edição recente do festival. Na mesma noite, os australianos do AC/DC (banda que protagoniza duas das numerosas cenas de discussão entre Luiz Antonio e Alice ao longo da trama) fariam um concerto marcante que entrou para a história da relação do brasileiro com o rock’n’roll, mas isso o filme não precisa mostrar, deixa para que a memória ou a imaginação do espectador preencha com prazer a lacuna.
– Leandro Luz (@leandro_luz) escreve e pesquisa sobre cinema desde 2010. Coordena os projetos de audiovisual do Sesc RJ desde 2019 e exerce atividades de crítica nos podcasts Plano-Sequência e 1 disco, 1 filme.
tipo de texto que dá vontade de correr e assistir ao filme.
Eu assisti antes de ler o texto.Filme muito bom,pena que aqui em São Paulo não pegava a FluminenseFM,mas tinha aqui a FM 97 de Santo André e a rádio Excelcior.
E o filme é ótimo. Pena que em aqui em CAmpinas ficou uma semana em cartaz. Na última sessão, tinha e eu e um casal na plateia. O filme tem apelo popular, merecia ser visto por mais pessoas.
Assisti o filme. Retrada de uma forma muito real que viveu nesta época. O Orock é maravilhoso e nos traz muitas lembranças. Em Belo Horizonte não pegava a maldita, mas na mesma época tinhamos a radio terra fm 99,9, que ouço até hoje através de app.