texto e vídeos por Marcelo Costa
fotos por Fernando Yokota
A felicidade, muitas vezes, está mais próxima e acessível do que muita gente imagina. Sonhamos, projetamos, planejamos, buscamos e, muitas vezes, a felicidade está ali, bem na nossa frente, esperando que a abracemos. “A felicidade é boa por uma hora”, pontuou certa vez Perry Farrell numa velha canção do Porno For Pyros. Porém, com sorte, em alguns momentos pode-se esticar esse tempo multiplicando-o e sustentando a leveza da alma por um tempo um tiquinho mais extenso. Por exemplo: quem foi a Casa Natura Musical no domingo (21) pode ser feliz por cerca de duas horas. E alguns podem ter dormido sorrindo entre sonhos e zunidos no ouvido.
No palco, duas mulheres incríveis ao lado de suas bandas maravilhosas tratavam de colocar sorrisos no rosto dos presentes, que cantavam canções de luta e fúria como quem se declara ao ser amado. Juçara Marçal, 62 anos, e Alzira Espíndola, 67 anos, amparadas em repertórios frescos, canções de álbuns que respiram esses dias insones, surgiram acompanhadas por músicos que não estavam ali como coadjuvantes, mas como cocriadores de sonoridades, parceiros responsáveis por alçar essas compositoras intérpretes a voos radicais e inebriantes.
Coube a Alzira E abrir a noite, pouco antes das 19h30, acompanhada da banda Corte, parceria celebrada em dois discos poderosos: “Corte” (2017) e “Mata Grossa” (2023). Marcelo Dworecki (baixo e guitarra), Cuca Ferreira (sax processado) e Daniel Verano (trompete, teclado, synth e metalofone) iniciaram com a instrumental de “Mata Rara”, faixa que abre o disco mais recente do projeto, até a entrada ensurdecedora de Fernando Thomaz (bateria) e a aparição intensa de Alzira. Entre sorrisos, “Chão do Abandono” surgiu, também, arrasadora, em versão potente, vigorosa, surpreendente.
No repertório de dez canções, as nove faixas de “Mata Grossa” marcaram presença: a faixa extra foi “Já Sei”, afinal “não poderia faltar uma parceria com Itamar Assumpção”, como pontuou Alzira E. O ponto alto, porém, acabou ficando para a soberba parceria com Alice Ruiz, “Sobra Falta”, com Alzira E iniciando só na voz e contrabaixo, e a Corte surgindo com delicadeza e, quando necessário, violência, para sublinhar uma letra que diz que “se sobra amor / a paz faz falta / se sobre paz / lutar faz falta / se sobra luta / sonhar faz falta / se sobra sonho / a vida falta / se sobra vida / não falta nada”. Foda.
Em uma noite “comum”, alguém poderia demonstrar preocupação: como entrar em cena após um show tão intenso e avassalador como o de Alzira E & Corte, mas a dobradinha desse domingo feliz era tão perfeita que Juçara Marçal (voz e programações), acompanhada de Marcelo Cabral (baixo e programações), Alana Ananias (bateria) e Kiko Dinucci (guitarra e programações) apenas manteve o alto nível musical do início da noite, revelando tanto momentos de poesia quanto de caos sonoro.
Recriando ao vivo o disco de pandemia “Delta Estácio Blues” (2021), disco daquele ano em votação no Scream & Yell e um daqueles álbuns que já nascem clássicos, e que daqui 50 anos irão reverenciar como reverenciam hoje discos ícones brasileiros da bossa nova e da Tropicália, Juçara abriu a noite com a canção de Siba, “Vi de Relance a Coroa”, e a felicidade estampada no rosto dos presentes “parecia a gente quando sai no carnaval”. A parceria com Negro Leo, “Sem Cais”, trouxe o caos para o palco, e a faixa título, o samba blues eletrônico parceria com Rodrigo Campos, ganhou bastante peso no trecho instrumental.
A poderosa “Ladra”, de Tulipa Ruiz, surgiu intensa, com Alana debulhando tudo e um pouco mais na bateria. A praieira “Corpus Christi” trouxe poesia, caos, maresia e sol na cara. “Baleia”, “Um Choro” (do disco de sobras “EPDEB”, de 2022), a boa surpresa de “Tristeza Não”, de Itamar Assumpção, com participação de Alzira E, uma ainda mais intensa versão de “La Femme A Barbe”, a divertida “Oi, Cat”, a arrepiante “Lembranças Que Guardei”, de Fernando Catatau (que estava assistindo ao show na plateia) e a indescritível “Crash”, um dos singles mais improváveis da história (assista ao registro mais abaixo) soaram, ao vivo, ainda melhores do que suas versões em estúdio.
Juçara lançou “Delta Estácio Blues” ao vivo em janeiro de 2022 no Sesc Pinheiros, um show por si só emocionante por tudo que o cercava: ainda em período pandêmico, todos na plateia estavam de máscara guardando certo “distanciamento” (se é que isso fosse possível num teatro). A banda entrou e, antes de tocar um acorde sequer, foi recebida com todo o público de pé, aplaudindo. Estávamos, todos, artistas e público, celebrando a vida (em meio a riscos, e quando não estivemos correndo riscos?) e a música. Era a primeira vez que o repertório iria ser tocado ao vivo, e foi inesquecível.
Dois anos depois, a sensação é de que “Delta Estácio Blues” ao vivo está em seu ápice. Juçara, Kiko, Marcelo e Alana estão claramente se divertindo ao vivo (e encantando o público), e vez em quando experimentando. Os desdobramentos do álbum (em EP e, agora, em sua recém-lançada versão remix, “DEBRMX”, 2024, com Juçara mostrando algumas versões no show) dão certa sobrevida ao repertório, mas a sensação é de que esse é um show cada vez mais imperdível onde quer que ele passe. Não perca a oportunidade. Logo logo cada um deles irá mergulhar em novos projetos, e noites como essa, em que fomos todos felizes, irão ficar na memória. Seja feliz você também!
– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne.
– Fernando Yokota é fotógrafo de shows e de rua. Conheça seu trabalho: http://fernandoyokota.com.br/